Sem precisar da lógica para entender afetos

O sol de hoje tá fraquinho. Aparece e desaparece. Olhei pela janela logo cedo, e me lembrei de Ciça, que nem sequer me avisou que ia gazear a faxina. Pois é, gazeou logo ontem quando eu achei de deixar uns quatro pratos sujos pra ela lavar. Me dei mal. Não gosto de lavar pratos. Uma vez Raulina me contou uma estória sobre ter ouvido alguém dizer por trás dela: 'lavando prato sempre'. Era uma voz de provocação saída do nada, sem dono. Ela também não gostava desse ofício chato, e eu reclamo sempre, que não aparece ninguém para elogiar um prato que a gente lava bem lavado. Não aparece.

Ciça me deixou na mão, desligou o celular durante o dia todo de anteontem e de ontem, que era pra não ser incomodada. Eita, que mulherzinha cheia de astúcia, aquela.
Outro dia peguei a danada mentindo descaradamente. Tava trabalhando aqui em casa e dizendo a alguém pelo telefone que estava no médico. Botei meus sentidos de molho e entendi que ela mente pra mim também. Por que teria que ser diferente comigo?

Estou resfriada, nariz obstruído, corizando feito uma doida. Mal posso respirar. Quando acordei hoje, fui pedindo a Deus para ocupar meu coração só com coisa boa. Troquei meu horário de falar com Ele, porque à noite me distraio, deito e durmo pesado. Nem um 'Pelo sinal' eu faço. Durmo como bicho, sem sequer lembrar do meu compromisso com o divino. Pior é Ciça, que nem em Deus fala. Nem agora que anda com a cabeça cheia de desencantamento amoroso, precisando de alívio. Vem buscar em mim, logo eu, que ela acha que sou mais sabida do que ela. Quer que eu dê respostas às suas aflições. Digo a ela, meio com misericórdia: 'eu não sei lhe responder isso, nem aquilo, Ciça'. O que eu me arrisco a fazer é arriscar mesmo, ponderar, procurar descobrir ou encontrar um caminho lógico pras coisas. E nem sempre as atitudes nossas ou alheias seguem uma lógica. São labirintos tão intrincados que a gente corre o risco de se tentar se adentrar muito, se perder neles.

Não sei dizer se um fogão de quatro bocas que ela ganhou do namorado, significa prova de amor. Por que a gente sempre precisa dessas certezas? É pouco, pouco, muito pouco, receber toda noite o dito cujo em casa pra dormir com ela. É pouco? O que é que faz a gente se sentir segura com um homem?
Mulher vive nessa angústia de querer saber se é amada. Racionalizo: Ô Ciça, quanto custou o fogão?. Você pediu ou ele deu sem você pedir?. Como foi que ele chegou com o fogão em sua casa?. Ela vai respondendo, se inclinando, ela mesma, a se convencer e me mostrar comprovações do amor dele por ela, através dessa compra. Quer minha confirmação, e eu dou pra ela ficar descansada, salva, justificada pelo afeto do homem dela. Mas ainda é pouco. Ainda há dúvidas que ela vem expor aflita novamente. Ainda bem não acomoda angústias, outras já chegam.

Hoje de madrugada acordei sufocada, sem fôlego. Usei o descongestionante e sosseguei. Aprígio acordou também, me abraçou apertado, me deu alento. Ô instante bom. Ali, na cama, Aprígio e eu bem juntinhos, sem dizer quase palavra nenhuma, pra não estragar o que o abraço dizia, me senti rainha, cheia de certezas. Não pensei se aquilo era prova de nada. Me veio à cabeça só objetividades: minhas jardineiras, as flores, minhas avencas, begônias, uma catenga que eu tinha visto à tarde no meio do jardim, passeando, escorregadia e feliz. Eu também gazeei a minha faxina. Aquela faxina de perder o momento pensando em ler e explicar afetos.

Essa manhã tá tão leve... Esse solzinho fraco indo e vindo... Quando desci para o quintal, me esperavam flores inauguradas de um tom rosa bem forte, enchendo de graça e romantismo uma das minhas jardineiras. Ciça deve andar pelo mundo batendo perna. Quando se angustia não pára em lugar nenhum tentando sossegar o coração. Mas o que aconteceu é que eu esgotei a minha raiva dela. Ô abraço bom o de Aprígio!






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