Sobre os distúrbios fronteiriços da personalidade

A sensação de vazio, medos incontroláveis, desejo de autodestruição, apontam para uma situação humana indesejável de alerta e de perda



Comecemos partindo do dogma cristão: Criado à imagem e semelhança do seu criador, o homem, em sua trajetória pelo que chamamos vida – essa experiência que nos aturde – poderia suscitar inúmeros questionamentos acerca desse princípio básico que pontua a sua origem e o propósito divino. Sim. Porque convém entender que se espelhamos o mistério da divindade, certamente o que ela diz de si mesma, é que aquilo a que convencionamos ser Deus, assim como nós, está ainda em construção.

Somados ao próprio mistério que nos envolve, seríamos as partículas de um todo ainda incompleto e imperfeito? À revelia do imponderável, como revelação dos distúrbios do fabricador nas criaturas que fabrica? É com essa premissa filosófica que a meu ver, cabe como substrato à psicologia moderna, que construo o meu texto a partir da leitura feita de outros dois, sobre esse assunto. A presunção e o olhar de jornalista, observadora social, me convoca a levantar estranhamentos, perguntas. O contexto se situa na abordagem sobre a ansiedade e o distúrbio fronteiriço da personalidade, conhecido como borderline.

Sem procurar entender a dinâmica do mundo em que vivemos, não é provável que consigamos entender com mais clareza, os problemas que envolvem a alma e a mente humanas. Também é preciso que se localize o lugar de ser e estar de cada um, dentro do emaranhado mecanismo da sociedade contemporânea. Apesar da constatação de deficiências no funcionamento do lobo central- uma área do cérebro – fatores tais como a influência familiar e social são reconhecidas como determinantes no comprometimento do juízo crítico, contribuindo para o descontrole emocional no indivíduo.

A sensação de vazio constante, o desejo de autodestruição, desamparo, medos incontroláveis, ataques de pânico, fobia social, sintomas do borderline e da ansiedade sem limite, apontam para uma situação de alerta e de perda. De uma perda maior e bem mais profunda: a perda de si mesmo, da própria razão da existência, à medida que se perde o sentido da vida. É como se cada uma das pessoas vítimas desses distúrbios, fossem as partes do mesmo todo, ferido, que se deixa apresentar, visível, como pontas de icebergs no barco das instabilidades e desordens emocionais, a balançar sobre as ondas do mar bravio da vida moderna doentia.

É aí onde um espaço às inquietações deriva perguntas: e o que porventura determina a influência familiar e a social? E qual das duas exerce influência sobre a outra em primeiro lugar?. Onde começa o moto contínuo? A roda social sobre a família ou a família sobre a roda social? Quais os elementos que caracterizam a idiossincrasia de uma influência familiar que propiciam as condições para que o distúrbio se manifeste, no caso do borderline, por exemplo? Quando se trata de ansiedade, pesquisas mostram que 65% das crianças cujos pais sofrem de ansiedade, provavelmente apresentarão sintomas parecidos. Se levarmos em conta a hipótese de que esses pais eram filhos de pais ansiosos, através de quantas gerações, os membros dessa família vêm repetindo o quadro de ansiedade e por quê?

Nessa instância, mergulhado na simbiose entre sociedade e família, o indivíduo inevitavelmente, passa a ser sujeito, já que inserido como peça da engrenagem, não pode prescindir dessa realidade. A ciência tem conseguido adentrar, sempre mais, na mente humana para averiguar e situar os 'defeitos' dessa máquina. Máquina, no sentido mais doloroso da palavra, porque somos fragmentados no próprio corpo, como ferramentas de extensão da sociedade de informação. Aonde está o espaço da experiência humana que dá alento à alma do mundo e à alma do homem?

Mas, se criados à imagem e semelhança de Deus, o grande mistério, somos e estamos todos esgarçados nas dores de uma ferida coletiva, talvez, fruto das atividades do pensamento divino projetados em nossa carne. Somos medo e fobias, somos vazios intermináveis, constelados nos portadores dos distúrbios fronteiriços de personalidade. No fundo também somos portadores, em maior ou menor grau, de todas as peripécias das dores psíquicas, como resposta às incompletudes e imperfeições na nossa busca para a construção perfeita de Deus e na construção de Deus em nós.

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