Nos jardins do Paraíso

Abri a porta e o homem sentado por trás do birô da sala, me olhou como se eu não existisse. Menos mal. Também olhei para ele, enviesada. Um dia incomum o de hoje. Pela manhã Erílio me ligou, e sem rodeios foi logo me contando, que havia perdido a carteira com documentos, cartões de crédito e dinheiro. “Assim? Do nada? Assim, ele achou que caiu do bolso enquanto andava de motocicleta. Ai meu Deus, pensei comigo mesma: será que não posso estar em paz? Pena de Erílio, o coitado sem dinheiro, e sem ter pra onde correr, nem com quem contar. Resolvi sair ligando para os irmãos dele: ‘Olhe minha gente, Erílio perdeu quinhentos reais. O que se pode fazer por ele?’ Ninguém se prontificou com nada.

Passei o restante do dia me sentindo mal. Vontade de chorar. Tinha que fazer uma viagem pra Maceió, dia seguinte, e ia levar aquela preocupação comigo. A felicidade é que Alvinho é diligente. Foi ao Banco quase na mesma hora que contei a ele, e colocou uma parte do dinheiro na conta de Erílio. Ninguém mais teve atitude. Só Alvinho. À noite uma raiva medonha me acordou umas duas vezes, ainda. Será possível que não vem mais nenhuma ajuda pra Erílio? Pode uma coisa dessas?. Fiquei virando de um lado a outro na cama. Era uma frustração de não poder resolver o problema de uma vez por todas. Ainda faltava dinheiro pra ele cobrir as despesas do mês. Julgava aquilo uma falta de sorte e me angustiava. Chorei para me aliviar.

Culpar a quem? Tinha sido falta de atenção dele. Como se coloca uma carteira no bolso detrás da calça? Mas eu não admitia, de jeito nenhum, que a culpa fosse de Erílio, não. Ele nem sabia mesmo onde tinha colocado... Aí eu ficava procurando justificar o descuido dele, construindo e amenizando hipóteses. Tanta complicação e aí, a distração em guardar o dinheiro em canto certo. Escapou-lhe a segurança do bolso da frente. Distração, falta de sorte.

Na capital, quase não chego a casa. O trânsito lento, e piorando cada vez mais. Meu dia foi uma peste. Para completar, quando falo, peste, me vem o receio de estar ficando descontrolada por besteira. Será?. Uma palavra dessas, eu dizendo, assim, com essa raiva toda, expõe certo descontrole emocional, talvez. Será que estou saindo dos trilhos?  Misericórdia.

Entretido com o seu ofício de remexer papéis e atender a três celulares, quase de uma vez só, o homem, quando entrei no cartório, olhou pra mim de favor. A sala estava cheia de gente. Uma mulher, funcionária, de meia-idade, loura tingida, me mandou entrar e sentar, justo em frente ao birô dele. Eu pensava, sem conseguir me desculpar, o porquê de ter negligenciado das autenticações daqueles documentos. Mas em pouco tempo estava distraída. Lembrei de Ciça, ontem, me pedindo, sem saber ler, para eu localizar no celular dela quem tinha ligado por último. A filha dela tinha escrito o nome da mulher: ‘Dasvigem’, pode?. E eu, prontamente, informei a Ciça: Foi Dasvigem, quer que eu retorne? Ela quis. Retornei a ligação e depois saí da sala. Fui rir baixinho da grafia da palavra.

A história da botija foi Tonho de Tereza que contou a mim e a Aprígio, lá em Lagoa Grande.  Ele embaixo medindo no olho, o peso da arroba dos bois, Aprígio e eu em cima da passarela do curral. Eu segurando seringa, e ele interessado em medir quantidade certa de vermífugo, vitamina e vacina, pra aplicar no gado, se fazendo de distante à conversa, e até tendo raiva de mim, esclarecida, andar perdendo tempo ouvindo caso de matuto ignorante. Mas eu quero ser matuta e quero ser ingênua, Aprígio! Admiro a ingenuidade de Tonho. Vai que isso traduz a passagem da Bíblia, que diz que a gente tem que se tornar criança, para entrar no Reino de Deus?

‘Foi assim: Seu ‘Atacílio’, um véio que morava pr’acolá, chegou perto de mim e me disse tudo direitinho: Tá no quarto que seus menino dorme. Embaixo da cama do mais novo, perto da parede. Tire o tijolo que tá solto e cave dois ‘parmo’. Arrepiei e senti um prazer infantil, de querer que aquela história fosse contada de noite, em dia de chuva, no alpendre da casa de taipa de Tereza, mãe dele, ouvindo o canto de uma coruja agourenta e os barulhos vindos da escuridão do mato. Tudo só pra aumentar o meu medo. ‘Foi mesmo, Tonho? Por Nossa Senhora, foi como eu contei! Ainda tem muita alma sem descanso, andando pelo mundo, dona Rosa!’

Em que mundo? Nesse, de computadores, antenas parabólicas, TV digital, redes sociais, a motocicleta, que todo matuto da Lagoa Grande e redondeza, tem uma, ainda se desenterram botijas? Será que Tonho está mentindo? Ciça quando mente, eu sei. Ela se engasga com nada, engole a saliva e me responde a pergunta com um: Hein?.Que é para ganhar tempo de inventar resposta. Pensa que eu sou besta. Aprígio não, esse tem certeza de que sou besta mesmo, mas nem ligo.

Doze reais, senhora. Paguei.

Sai de lá e ganhei a Rua do Comércio, com a papelada cheia de carimbos e selos, impressionada com a grossura da corrente no pescoço, e com o tamanho dos dois anéis de ouro, imponentes, enfeitando os dedos do homem. Só pode! Cobrando o que cobra só pra carimbar e colar selo em papel! Dinheiro fácil assim, só ganhando uma botija. Mas nem bem tinha dobrado a esquina, me acovardei do pensamento e me arrependi de tê-lo pensado. Mas quem manda em pensamento? Ele vem assim... Caminhei até a Catedral pedindo perdão a Deus pelo mau juízo. Não é Ele, tão misericordioso quem me tolhe, mas o catecismo, que não admite que eu confesse, nem pra mim mesma, minhas maledicências.

Asseguro-me de que tenho o direito de revelar que sou falha, mas não me convenço que posso, senão, depois de ler uma porção de papéis que trazem mensagem cristã que recebo na rua, eu os rasgaria e os jogaria fora. Mas guardo tudo com medo de ofender a Deus. Tenho receio em perder a salvação e o céu, praticando impropérios contra a doutrina cristã, e depois ser alma penada. Pra mim seria uma peste mesmo. Isso sim, uma peste, morrer sem ter canto pra ficar. E se tem uma coisa que eu quero mesmo, é descansar nos jardins do Paraíso. Eu, amiga íntima do coração do Altíssimo.


Comentários

  1. Adoreei tia!
    Muito bom de ótimo de mais...
    Acho até que nem pisquei os olhos!

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