No campo de aviação em Santana do Ipanema

Mais estarrecedor que ver através dos vídeos amadores, cenas do capotamento da Hillux, que terminou com a morte de uma pessoa, no Campo de Aviação em Santana do Ipanema dias atrás, é acompanhar a reação e o comportamento das pessoas, segundos após as mesmas cenas que são, de fato, chocantes. Em dois novos vídeos divulgados aqui no CadaMinuto, ouve-se expressões que detonam a nossa noção do que significa a palavra chocante, porque se apresentam e acabam se convertendo em falas bizarras, que denunciam e servem como termômetros às emoções, como apreciações generalizadas, certamente,  acerca da juventude.

Na sequência de imagens a ‘plateia’ invade o palco da cena principal correndo. Alguns, é verdade, caminham meio atônitos, enquanto a música local continua a tocar alto, ainda, por algum tempo. Alguém próximo daquele que está registrando a ocorrência, talvez quem sabe(?) o próprio cinegrafista amador, fala com uma voz cheia de adrenalina, como se estivesse assistindo cenas de um filme, desses que espetacularizam ações humanas e que nos dão a impressão de que somos super-heróis imbatíveis. Será que se espera que, naturalmente, a vítima arremessada para fora do automóvel, se levante imediatamente após a queda, limpe a poeira do chão e, sorridente, acene para essa mesma plateia, sob os seus aplausos?. 

Caralho véi, caraca véi, a maior queda do cara no chão aqui...” São exclamações que soam emocionadas. Sim, porque a gente costuma acreditar que a palavra emoção só se destina àquilo que vem para fora da gente, como manifestação de bons afetos. As emoções questionáveis também são afetos. Afetos ou afetações questionáveis?. Digamos que o que se ouve são quase afetações. Enquanto isso a gente passa um tempão envolvido com as cenas capturadas pelo vídeo. Temos os ouvidos surdos e corremos o risco de não percebermos que o que está fora desse foco, também está contido na cena e participa igualmente, mesmo quando do recorte feito pelo vídeo, de uma realidade dialética, acontecendo, vista como sendo apenas, coadjuvante dela mesma. O que fica imperceptível à maioria é o cenário completo, subtraído pelo espaço do visor, onde o espetáculo enfoca o que fica aparentemente intangível: o espectador e a sua reação.

É justamente a plateia que sinaliza a emoção através dos afetos que também precisam ser capturados da cena. Logo por trás da imagem que nos absorve, está imerso à maioria, o som das vozes, que deveríamos ouvi-las também. Estamos tão acostumados à leitura da imagem (e que leitura!) que abrimos mão de todos os outros sentidos que nos auxiliam na significação dos acontecimentos. Parece que o que acontece ‘dentro’ do visor, extrai dele a realidade geradora daquelas imagens, criando uma experiência unicamente virtual, em forma de fantasia. Daí que toda a análise da ocorrência tende a ser feita dentro dos limites desse recorte tecnológico, enquadrada pelo vídeo-amador. Mas o que excede desse contexto focado pela imagem, contém, senão respostas relevantes, a indicação para se investigar o comportamento e afetividade dos jovens.

Os acontecimentos são o palco onde as relações e reações de afeto, solidariedade e o respeito às pessoas, exibe um perfil de significação da vida. Acompanhar com atenção a fala desse jovem deveria ser uma questão séria de escuta, para a sociedade. Que mundinho é esse, onde a disposição à euforia é visível, pelas alternações da voz de um rapaz, e parece ilustrar um momento de privilégio em estar ali e em assistir cenas tão espetaculares? Coisas que a gente vê em filmes. O sentir, o medo de perder a vida, o ser solidário à vida do outro é sentimento disponível somente para ‘gente velha’. Tem-se a sensação de que o elo coletivo de preservação à vida, como condição comum a todos, está sendo quebrado. Mas, se a vida do outro não me interessa, é porque não estou conseguindo entender o valor da própria vida.

No geral tem-se a impressão que estavam os jovens, em uma daquelas arenas romanas, onde gladiadores recebiam o indulto da vida, concedidos por expectadores eufóricos, ávidos de cenas sangrentas, como entretenimento. Isso que parecia estar lá atrás, diante desses quadros apreendidos da realidade, se mostra agora sob outros aspectos, que incluem as demandas da sociedade atual. Essa, que quando em anos atrás, prenunciava transformações, a minha avó dizia ironicamente: “são os ‘refitetes’ da bela sociedade” (nunca encontrei essa palavra no dicionário), mas ela bem que poderia constar na lista das palavras que englobam estranhamentos, diante do que temos visto e vivido ultimamente.

Com algumas ressalvas, o segmento jovem deste nosso mundo moderno, parece não prescindir de pão e circo, como mecanismos necessários para curtir a vida. Mas que tipo de alimento e de que diversão eles precisam? Da euforia estampada através de reações que contrariam a nossa lógica de preservação e sobrevivência ou do entusiasmo real pela vida?  Cavalos de pau constituem uma das manifestações visíveis dos desafios e do espírito de aventura tão freqüentes no comportamento dos jovens de todos os tempos. Cenas que dão mostras do real perigo dessas brincadeiras, como o fim de uma vida humana, remetida pela porta de um veículo que capota sob o olhar da plateia, mostra que pelo menos um dos conceitos de entretenimento atual, pode incluir como requisito de diversão, um perigo ainda maior; a banalização da vida.

Ainda que a maioria presente ao local não tenha presenciado o acidente através da captura de uma lente, parece haver, com exceções, é claro, um compartilhar coletivizado, na ultrapassagem de um limite essencial entre o real e o fantástico, que infelizmente, já dispensa a sensibilização, como reação natural de humanidade. Os acidentes e suas consequências ocorrem, mas se transformam em cenas isoladas, detonadoras de notícias e euforias impactantes, como um merecido espetáculo que agrega ‘valor’ e frenesi ao entretenimento. O significado da vida vem apresentando ‘ruídos’ que acontecem dos vazios provocados pelo barulho ensurdecedor dos divertimentos sufocantes, exauridos na ausência de sentidos mais profundos e nobres da existência humana. É urgente que se atente sobre isso.

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