O morto-vivo


Este homem que encontro todos os dias, acha-se deitado sobre o chão da rua, esperando que as pessoas passem sobre ele, como se fora, ele mesmo, um quase morto. Não aprecia o contato com os outros ou com o mundo dos vivos. Passa-se como uma coisa qualquer, um sem-mãe que seja ou que nunca haja tido uma para ensiná-lo a vida. De outro modo não haveria sido o que se tornou: uma pessoa desprezível no mesmo grau e medida que despreza os outros. 

Vi-o, como sempre o vejo e por essa razão não cogitei perguntar por que se acha ali, estendido, barriga para cima, com um olhar vago de quem não sente, não aprecia nada e nem ama coisa alguma. Para que confirmar o que eu já sei? Há dias para os que passam, mas há anos a mim, que já o venho sondado, que a sua vida é um restinho de respirar, ler coisas que se refiram a desejos fortuitos e seus apenas, e mover-se em torno de assuntos redundantes sobre novidades que o mantenham cada vez mais, em apurado narcisismo. Tenho-lhe pena, confesso. Mas, prefiro espelhá-lo nas retinas dos meus olhos miúdos, à extensão de um denso sentimento de estranheza profunda, antecipando as minhas próprias angústias, que são inevitáveis e que não posso escondê-las. Pior do que ser um morto-vivo, é ter a certeza de que estou diante de um infeliz.

Falta-lhe algo que não posso completar ou que eu possa dar de mim, por mais que eu queira. Essa vontade mora aqui dentro, como coisa transformada em segredo. Um segredo criado à força, porque este homem não me quer escutar, nem a ninguém. Submeto-me a guardar em silêncio sepulcral minha inquietação e o desejo de tirá-lo dali, em definitivo, daquela rua onde se deita. Adianta lançar sementes em terra árida? Apenas dou-lhe as duas mãos para que se levante do chão, quando o percebo querendo se erguer, mesmo que depois volte a vê-lo na mesma posição e no mesmo lugar. 

Margeio, pois, a sua solidão empoeirada, a sua vida sem sentido e à deriva assim como a sei e que me incomoda, porque a rua em que se deixa abandonar é via da minha vida, e deitado sobre ela, ele é como as flores que vejo sujas, quando viajo por estradas de barro. Estradas e flores que sempre me levam aos recônditos aonde poucos vão. Lugares de flores singulares que se podem aspirar-lhes o pó, descobrindo-as tão belas ali, condenadas pela poeira à indiferença dos que trafegam e à própria indiferença por nunca se verem na realidade, porque o destino de serem flores de beira de estrada as oculta, e a maioria dos que por ali passam, não ligam pra elas.

É este o homem que nada sabe sobre as delícias da vida, por não saber nada sobre a grandeza do amor. Infeliz, se deixa ficar sobre o chão, destinado, esmoler de afetos primários, mendigo e mal nascido das entranhas de quem não o soubera amar, porque, também sem sorte, não fora vítima do amor, já que por maldita descendência afetiva, não pudera sê-lo e que por isso, talvez nunca pudesse ser dado a ele, o que através de gerações anteriores, não se compreendera nem se sentira, por se tratar o amor, entre eles, de um insondável mistério. Coitado do morto-vivo.

Comentários

  1. É verdade, Goretti, nós nos tornamos Zumbis de um meio, de uma influência ,de necessidades muito mais material, do que mesmo espiritual! A mendingância, o flagelo íntimo,a falta de amor ao próximo e a falta de confiança em nós mesmo ,tornou-se uma profissão, um emprego bem remunerado! Culpa-se o governo, cupa-se Deus, mas esquecemos que nós somos os primeiros culpados! Para darmos água, pão e um sorriso á uma criatura não é preciso a permissão do governo ou muito menos de Deus! Mas, somos todos do mesmo sangue e da mesma carne, e filhos do mesmo pai! Será?

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  2. Ceci disse: Esse Homem Morto-Vivo, querida Goretti, também, já vi vários. E interessante como em sintonia com o que disse, sinto semelhantes "sensações" quando passo por Um desses "Mortos-Vivos". Fico me perguntando o que o tinha levado aquela situação? Seria por simples escolha ou desgosto sem igual? Incrível como voce trás uma Figura, até comum, do nosso cotidiano, mas que até nos passa despercebido de comentarmos, como a chance que estou tendo agora. E a maioria são Homens. Novos...Nem pedem, nada dizem, nada são? Esses "Mortos-Vivos", que também encontro, parecem Imóveis...São um grande mistério. Teriam sidos afortunados e algo aconteceu que os "jogou" na rua? Onde reside, realmente, a Raiz dessa questão? Grata, minha Escritora Instigante. Amo quem "cutuca" minha mente. Vida Longa e Próspera! E menos Mortos-Vivos nas ruas! Assim Seja! Ceci (como posto, Gó, sem ser anônima?)

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  3. Olá gente!!!! Agradeço a participação, a interação de vocês, que sempre será MUITO importante pra mim!!!! Abração!!!!

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