Carta à minha avó


Mãe Tina, hoje eu acordei com saudades do seu quarto escurinho, do seu guardarroupa, que eu fantasiava e o enchia de mistérios, do seu cheirinho de Musk, aquele perfume que a senhora literalmente derramava pelo corpo todo, das nossas conversinhas miúdas e de pé-de-orelha, de tanta coisa, que me dói e ao mesmo tempo me faz sentir premiada. Escrevo para avisá-la de que o meu tempo chegou: vou ser a avó de Isadora, e diante desta nova fase em minha vida, tenho me lembrado da senhora, muito mais do que sempre lembrei, desde o dia que deixamos de nos ver.

Tudo é lembrança: os dias de domingo, os seus passinhos rápidos, andando sobre o passeio das praças, o terço envolvendo uma das mãos, junto com a echarpe, o missal, o tubinho azul-marinho do apostolado, sapatos de salto baixo, mas de salto, os olhos miudinhos e sempre adivinhos, saídos da missa matinal. O seu menor afastamento de casa me causava saudade. Era como se à sua saída, a condição da alegria também se ausentasse.

A senhora me mostrou e me ensinou, praticamente, tudo o que sei sobre como adentrar pelos caminhos da vida, como vencer barreiras e como pegar atalhos. No seu colo, contemplei universos distendidos, e aprendi a viver em cada um deles. Aprendi histórias sobre a vida dos santos, histórias da nossa família. Sua história - a divina comédia - de fazer inveja a qualquer humorista. As suas pelejas vitoriosas, dignas de fazerem sombra aos Doze trabalhos de Hércules. Construtora da própria teia, que nem as aranhas caseiras, me guiava soltando o fio que ia tecendo o meu destino.

Tão adiante do seu tempo! Tão jovem o tempo todo!

Tenho voltado à minha infância, só para me ver menina, sentada novamente em seu colo. Só para ouvir a sua voz me ensinando a rezar de novo o Santo Anjo, repetindo cada frase, como fizemos há tanto tempo, mas que perdura eterna, em minha memória, em algum lugar dela, em um dos melhores, que eu reconheço ter dentro de mim. Volto ao seu calor, à sua cama quentinha, para ser criança, sua neta, para viver a magia do amor que sempre existiu entre nós, para aprender a ser a avó maravilhosa que a senhora foi.

Quero os seus chás da tardinha, sua fé inabalável em Deus, suas devoções, seu sorriso fácil, sua generosidade e o dom curador do seu abraço. Aprender como se aplicam castigos, como funciona a didática do amor sem limites, mas que por amor impõe limites. Também, colher da lembrança do seu olhar severo quando necessário, a ordem, o ‘sangue-no-olho’, como premissa de autoridade adquirida pelo respeito e não pelo temor.

Escrevo para dizer que em meio à alegria da novidade, sinto medo e apreensão diante da responsabilidade de cumprir, não um papel, mas a precisão de viver e compartilhar com minha netinha, uma razão maior, com senso e consciência do meu dever, de contadora de história da vida que já vivi, das impressões que tenho colhido, de ser a transmissora de valores e, sobretudo, emissora de mensagens sinceras de esperança, confiança e de fé, em um mundo tão conturbado.

Que tal marcarmos um encontro? Pode ser através dos meus sonhos? É que talvez, presencialmente, eu possa explicar melhor que o que eu estou pedindo é ensinamento mesmo, para que eu faça valer a força, a sabedoria e maturidade, para viver a experiência de ser avó. É debulhar a Graça maior - que a senhora soube executar com tanta maestria -, comunicar e transmitir para mim, pelo exemplo diário mediados nas extensões da vida. Sempre distribuíndo alegria, muito humor e dando um banho de como se aproveita a existência, exercitando o maior dom da sua alma: a arte de amar.

Comentários

  1. Goretti. Adorei seu texto tão bem escrito, tão rico em substância e forma. Não tive a sorte de ter a figura duplamente maternal da avó, mas imagino quanto isso nos preenche, nos faz bem. Parabéns.

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