A cultura alagoana perde Dona Clarice, a mestra rendeira

Na foto, da esquerda para a direita, Dona Clarice
Na última quinta-feira, a mestra artesã, que tinha 79 anos, se submeteu a uma cirurgia de vesícula, no Hospital Chama, em Arapiraca, tendo passado bem. Apresentando complicações na manhã de hoje, veio a falecer. Dona Clarice deixa enlutadas suas três filhas, sua cidade e a cultura das Alagoas. Deixa-nos uma mulher que era um dos Patrimônios vivos da Terra dos Marechais. Seu sepultamento aconteceu em São Sebastião, sua terra natal, às16h30.
 
*Texto escrito em 2009 e publicado no Ensaio Geral/CadaMinuto

Há muito mais de dez anos, talvez, uns vinte e poucos, conheço dona Clarice, a mestra artesã da renda de bilro, lá de Salomé, que de uns tempos para cá tornou-se São Sebastião, cidade localizada no micro-clima do agreste alagoano. Tanto ela, como Gustavo Leite, foram-me apresentados pelo meu irmão, ambos em ocasiões distintas, entretanto, num desses encontros familiares, em torno da sua mesa da cozinha. 

Conheci-as sem cerimônias nem honrarias e sem os prefixos que acompanham e nomeiam as pessoas, mas que vêm a torná-las e a tais instantes, momentos luminosos. Diga-se de passagem, conhecer pessoas na cozinha de uma casa, dispensa quaisquer formalidades.

Dona Clarice e eu trocamos um aperto de mão e um abraço apertado. Pessoas como ela, costumam demonstrar plenamente a satisfação de conhecerem as outras e essas coisas se traduzem, também, em nenhuma reserva de contato físico, aproximado, afetuoso e forte. 

No entanto, abraçar dona Clarice é como trazer para o abraço uma taça de cristal. Mulher franzina, de baixa estatura, esconde no corpo frágil, a maestria das mãos e o talento que lhe ocupa com o ato de fazer, o debulhar das proezas da sua imaginação. Ela cristaliza o momento das linhas que se entrelaçam, na criação de rendas espetaculares, largas, estreitas, delicadas, de diversos motivos.

O belo artesanato é elaborado a partir de rústicos instrumentos. Bilros e linhas sobre uma almofada, e à frente dela, a mestra Clarice Severiano dos Santos, que joga as pequenas peças de madeira, para um canto e para outro, as peças que dançam um esquisito balé, no espaço vertiginoso das suas mãos. 

Um balé de dedos ágeis, como aranhas tecendo arte, para registrar no tempo a presença de uma mulher simples, que tem a natureza de uma daquelas Parcas, deusas gregas, que tecem o fio do destino humano.

Dona Clarice preconiza com suas rendas, a nossa intrínseca necessidade de criar e recriar o belo, como conexão àquilo que lembra a nós mesmos o que somos e do que somos capazes. E somos, ainda, capazes de resistir às intenções da massificação cultural que elimina a originalidade da criação individual, como expressão do eu sou.

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