Uma ideia curiosa: Não tenho como negar




Goretti Brandão - Sertão Menino - OST 100x120m
A vida é curta. Não há como negar isso. Criança ainda, a morte é uma ideia vaga. A ausência das horas, com o significado que elas têm ou a própria condição de inocência, forja uma certeza inquestionável, de que morrer é coisa alheia. 

É para os outros. A gente nunca, mas, nunca mesmo, vai morrer. Pelo menos era assim que eu pensava aos sete, oito anos de idade. O tempo da infância é lento e a sua temperatura se mede por outros termômetros e se fixam na nossa mente, mais tarde, através de memórias que vão farejar cheiros, escutar onomatopéias, restos de conversas, objetos...

As minhas galochas, o barulho dos meus passos, pela avenida  esburacada, o frontispício do Grupo Escolar, a bandeira do Brasil hasteada, são lembranças que aparecem bem em cima do meu baú de relíquias sagradas.
Minha vida é, portanto, a sagração de miudezas, as quais mantêm o exato tamanho da minha altura, se assim posso dizer, porque revejo a meus pés, que pisam na lama da rua. Das mãos pequenas, meus lápis de cores espalhados sobre o chão frio de cimento, colorem ilustrações. E dos cheiros, as goiabas serpenteiam sob a luz do sol, entre os galhos, oferecendo perfume quase enjoativo. Quase.

Mais lembranças: Há um muro separando quintais, há vozes do lado de cá e do lado de lá. Um menino que se perdeu no meio da feira, veio ter à porta da minha casa chorando. Na sala da frente, o homem coberto de farrapos, bebe em goles avantajados, o café oferecido e, com as mãos ásperas e sujas, come pedaços de pão em grandes mordidas. Está com fome. Muita, coitado. “Nossa Senhora é quem há de lhe dar mais”, agradece e vai embora.

A infância é um grande misturar de estações. Do inverno, as goteiras pela casa, as bacias espalhadas, o tique-tique da água caindo, a impressão de que o mundo é parado, e dizerem que gira em dois movimentos é uma grande mentira, senão a gente caía no chão. Em que chão? Caía no espaço. Noção zero de espaço. A infância cabe a si mesma e faz as perguntas certas, nas horas certas. Quanta exatidão! 

E na primavera brotam das craibeiras, mulungus, barrigudas e canafístulas, singulares floradas. Quem anda pelo mato pode vê-las. Do caule de um Pau d’arco, se tiram cascas para fazer chá e o tronco do Anjico curte couro. Realidades imutáveis, ancoradas sobre um tempo que se arrasta enquanto a gente descobre coisas, leva safanões e aprende com quantos paus se faz uma jangada.

Como em uma fotografia, lembrei da minha boneca preferia, a minha Lucy. Amiga inseparável. Aonde foi?

Hoje eu acordei com uma ideia curiosa e contei quantos jogos de jantar já tivemos em minha casa, desde o início do casamento. Seis jogos, em quase três décadas. As mãos ensaboadas, os desleixos, deixaram quebrar a maioria. Fui conferir. Velhas caixas, em um dos quartos da casa, guardam peças soltas de cada exemplar. A poeira e a solidão de objetos que perderam funções ativam o meu desejo de mobilizar ainda mais memória, de contabilizar pires, xícaras, pratos de sobremesa. Hoje, todas as miudezas se fazem grandes e me contam.
O museu que me refaz  está guardado. Ele é cheio de coisas que falam, e, estranhamente, iguais às coisas da infância, elas continuam a requisitar e a exalar cheiros, onomatopéias e memórias que se colorem quase sozinhas, e que forjam em mim, uma arrojada certeza de que como os outros, eu também morrerei. A vida é infinita. Curto é o tempo que se tem para estar nela. Não tenho como negar isso!

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