Bom dia, Ozu!


 O cinema japonês: sobre a mediocridade da vida

A vida é simples, não fosse tanta coisa que a gente vai agregando, possuindo e se acercando para viver. Basta ver a quantidade de apetrechos que se tem em uma casa. Parte daquelas coisas está ali enchendo espaços, virando entulho, atrapalhando, e tão pouco ou nenhuma vez sendo utilizadas. Por que se compra tanta coisa? Por que essa procura insaciável por coisas que estimulam em nós, prazeres e sensações fugazes, que logo se esgotam e nos deixa atrás de mais coisas?

Yasujiro Ozu
Vida e Viver. Entre uma coisa e outra há bastante diferença. Respirar, correr, dormir corresponde às certificações de se estar vivo, mas viver supõe a utilização desses recursos básicos. De preferência, da melhor forma possível. Um dia a gente sai da vida, mas a vida permanece. É o milagre que se repete em todas as espécies que povoam a Natureza, esse útero onde o continuum acontece.

Cena do filme Bom Dia
Há uma linha invisível, entre a vida como condição e o viver como experiência. De um lado, a criatividade. Do outro, a mediocridade. A criatividade humana é a magia para que se ultrapasse o medíocre: as repetições, a reprodução, o corriqueiro e o enfadonho, que parece ser próprio da ‘formatação’ da vida. Correr atrás de sensações é repetir fórmulas vencidas e frustrantes. Viver pressupõe algo maior porque requisita sentimento e a vivência daquilo que só o coração é capaz de sentir.
Cena do filme

Foi Yasujiro Ozu, diretor japonês, quem me 'convidou' à produção deste texto. Seu filme Bom Dia (1959), torna tangível a linha entre a vida e o viver. Ele apresenta a história do cotidiano de uma comunidade no Japão. Um viver dentro dos moldes da vida repetitiva, onde as mulheres repetem mecanicamente, seus afazeres domésticos, e os homens trabalham. Não parece haver consciência pessoal da necessidade de experiências que possam enriquecer a vida.

Os enquadramentos da câmera evocam limitações: Uma ruazinha, estreita, e dois telhados, que emolduram a elevação do terreno ao fundo, recortam aquele mundinho, do universo possível lá adiante. O cenário onde a maior parte do filme acontece, esquarteja a amplitude da realidade, e nos prende àquele espaço reduzido, condenado à quase inexistência de novas percepções. De tão iguais até as casas daquele conjunto nos confundem.

Como as casas dos nossos conjuntos habitacionais, também nos confundem. Os espaços físicos repercutem aspectos da realidade humana. Em qualquer lugar do mundo nossos dramas são os mesmos: Na vida, a mediocridade ocupa o lugar da criatividade, mas nossos vazios continuam pedindo ocupação. Para isso é que somos chamados a viver. Em Ozu, as mulheres tecem intrigas umas com as outras, para preencherem a vida.

Os homens aposentados querem voltar ao trabalho, porque não encontram outras razões que justifiquem a vida . E na vida fora do cinema é isso que acontece à maioria.

Mesmo modernos, continuamos procurando preencher ausências emocionais, nos cercando de coisas que estimulam nossas sensações. Mas, convenhamos, isso é mediocridade. Se não fosse, essas coisas nos bastariam. 

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