Eu e Isadora

Há poucos dias do nascimento de Isadora, senti que estava próxima a atravessar, de forma literal e não apenas simbólica, mais um limiar da minha própria história. Essa jornada épica, um tanto homérica, que somos chamados a fazer nas diversas fases da vida. Foi assim quando o pai dela entrou para a faculdade: ansiedade e medo e um misto de alegria e apreensão, que às vezes era também uma quase-tristeza, se apoderaram de mim. 

Entendi que meus rituais de passagem acontecem e são pontuados, perpendiculares, às fases da vida dos meus familiares. A alegria de assistir as proezas, conquistas e crescimento dos meus filhos, situaram em mim, na minha pessoa, a realidade de sair de um aposento para outro. De ocupar um lugar novo, re-significado,  primeiro, dentro de mim, depois, no seio da minha família e frente ao mundo.

Sair de onde se está acostumado é como sair de uma casa onde se morou muito tempo. E para a casa que estamos acostumados, temos nossos cantinhos, os lugares-comuns, de aconchego e reconhecimento. Lembro quando mudamos para a nossa casa nova, o quanto que o meu filho mais novo reclamava a falta desses cantinhos, apesar da nova ser maior, mais bonita e muito mais confortável.

Minhas quase-tristezas, são definidas por mim, hoje, como o ter que me despedir da sensação de segurança, que inclui o saber-se quem é, o que fazer e o como viver, em um determinado período da vida, e trocá-lo por outro lugar, onde será necessário 'trocar a roupa velha' por outra nova. Ajustes são precisos e preciosos. A verdade é que a gente sai da casa que achava que Era, para depois descobrir que estamos na mesma casa, só que em cômodos novos, completamente desconhecidos.

Esta noite sonhei que estava em visita à casa da minha infância. Estranhei que ela estivesse com tantas reformas, apinhamentos, desconfortáveis cômodos, feitos de 'carregação', como dizia minha avó para as coisas mal feitas. Havia claraboias em lugares indevidos, espaços apertados sem o devido cuidado à circulação de ar. Tinha um apêndice, que fazia parte da casa, em um nível abaixo, onde moravam um casal de meia-idade e uma mocinha.

Adiante, encontrei a minha mãe que vestia um belo vestido de renda azul e parecia ter a minha idade. Gostei do vestido e quis um igual. Minha avó afirmou que aquele local ocupado pelo casal e sua filha, pertenciam a ela, não a minha mãe...
Meus sonhos reforçam simbolicamente os limiares e os definem para mim. Cheguei em minha nova casa,a mesma, que agora é outra. Nela as figuras femininas condizem com os novos papéis a serem avaliados e apontam para possíveis integrações.

Sou avó. Tornaram-me avó. Tornei-me avó por aceitação e consciência. E ao ver Isadora, minha primeira netinha, senti tanta emoção e tantas são essas indescritíveis emoções, que as palavras boiaram insípidas sobre esse vasto e novo sentimento que me acode. Ante a certeza de que à minha vida a meia-idade chegou, confirmo minhas escolhas: sobre o que levar adiante, o que filtrar como valor, como ética, como moral... Amadureço para ensinar e para deixar marcado no Tempo, o registro do que vivi, e para tal, aprofundo raízes no solo da minha alma, para beber do conhecimento, à seiva da existência.

O nascimento de Isadora foi a chave para a porta e a travessia deste limiar. Minha quase-tristeza em ter que sair do que conheço de mim, agora é só alegria após a sua chegada. Enquanto ela se adapta ao mundo, eu me adapto a mim, para além do mundo físico conhecido, mergulhando em outros lugares, espirituais. Lá, recupero da mulher que sou, a feminilidade e o sentido de ser alguém. Descubro a Graça, como um presente, e a Sabedoria, como um dom precioso, ambos distendidos sobre um bastidor, na tensão entre o tempo e os Mistérios de Deus, que bordam juntos, os pontos da minha trajetória. 

Isadora é sublime na plenitude paradisíaca da infância e eu participo dessa plenitude, retornando aos lugares adormecidos da criança que fui e que guardei. É do universo dessa criança, que brota a Lili, o Anjinho, meu mundo celestial e pueril restituído, onde a fantasia e a imaginação, enchem o papel de desenhos. Meu coração infantil é lúdico. Está provado. Eu me percebo jardim, onde a  minha netinha é botão de flor orvalhada.

Cheguei em meu novo lar: a casa da minha avó, dentro da minha própria casa, e já me reconheço nela, como a avó. Por isso mesmo, devo prescindir do modelo da 'casa da avó' que o meu sonho aponta, assim como da roupa da minha mãe, para ser a avozinha de Isadora. A casa da minha avó é dela. A roupa da minha mãe, não me pode ter serventia. Esses símbolos são referenciais. Vou ter que reformar a casa toda: colocar a clarabóia em seu devido lugar, arejar os ambientes, não fazer nada de carregação... 

Modelos de avós prontos, não cabem nem a mim, nem a minha netinha. Nossas histórias são perpendiculares, e em um ponto tal, os portais dos nossos limiares se cruzam e se confundem. Nele, Isadora e eu nos encontramos: a criança que ela é, com a criança que salta de dentro de mim ao seu encontro. Ela, inocente - por uma condição da inconsciência de si - e  por isso, plena, começando a conhecer a vida. E eu, recomeçando, entro enfim, pelos novos caminhos, consciente da  vida e buscando a minha própria plenitude.










Comentários

  1. Gó,que lindo!!
    Maria Eduarda disse que vc sabe escrever bem demais!!
    Amei!!!

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  2. Ely, querida!!! Obrigada, viu? Diga a Dadinha que estou ansiosa para revê-la! Beijo

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  3. Oh Deus Gó! quanta emoção, não sei como expressar...

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  4. miryaferro@hotmail.com25 de julho de 2012 às 10:40

    Chorar, talvez amenize a emoção....

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    1. Miruchinha, a sua sensibilidade e carinho me deixam tão bem... Beijão de quem lhe quer bem: EU!!!

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