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Mostrando postagens de 2017

De estimação

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Começou tentando tirá-lo com vassouradas para fora de casa. Ele, teimoso, arrumava um jeito de voltar. Foram tantas as tentativas sem sucesso, que achou por bem chamá-lo por um nome e adotá-lo, o que a princípio o fez para não dar-se por vencida, já que não via mais o que fazer ante a persistência do intruso.  Zezinho.  À contar a sua primeira aparição na porta da cozinha, era digamos, uma coisinha mal forjada e de pequeno porte. Cresceu às vistas dela subindo os degraus do beco todas as tardes e virou sapo de estimação. Tinha feito por merecer. Impôs-se corajoso à presença da dona da casa, brigou pela ocupação nos cantinhos das varandas e nas sombras úmidas do jardim. Estabelecido, reconhecidamente nomeado, Zezinho assumiu seu serviço. Como grande comedor de insetos, recolheu mosquitos com língua viscosa, batendo as lentas pálpebras sobre os caroçudos olhos. Livre, ia e vinha sempre à tardinha de todos os dias, acomodar-se na escadaria. Numa dessas vezes não se apresentou. Depoi

Às três da tarde

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Além, do que além não sei dizer, nem como, nem o que é. Mas a sua existência perturba-me. Transito entre dilemas  e violetas sonoridades. Entre a pracinha e a igreja de Santa Rita. Entre o Farol e as lagoas Mundaú e Manguaba. Igual como pelejo com a palavra “cafumango”  que entrou na minha cabeça e não quer sair, E com a tarde, rascunhando em mim, pequenos versos, dispersos e inquietantes. (Como bichos-de-pé, coçam-me à vontade do amor. Agora, e último). Inflama, infecta minha alma, perde-me! Meu fio de voltar preso à cintura, é referência mitológica à beleza do verso. É pura vaidade egóica,  disfarçada  em escrita bangalafumenga: Essa palavra que encontrei procurando outra. Em poética chinfrim, adulterada, incapaz de enganar minhas tolices. Eu sou uma joão-ninguém,  dona de singelas pobrezas. Meu coração tem os bolsos furados. Escapam-me por eles, os tesouros que talvez sejam. Ou que estejam para sê-los. É como um doido o meu coração. Sentado no calçam

Madrepérola para adornar saudades

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Nossa Senhora do Rosário O tecido do vestido para a minha Primeira Comunhão, o terço de pérolas, a vela e o livrinho de orações - o missal -, vieram do Rio de Janeiro. Minha mãe andava de um canto a outro dentro de casa fazendo anúncio, que ela nunca foi de fazer média fora dela ‘o livrinho tem a capa de madrepérola’. Foi a primeira vez que ouvi o nome “madrepérola”. Fiquei curiosa e encantada só de ver a satisfação dela, encher-se por convencida vaidade dizendo aquilo. Novidade. Eu adorava uma. E aquela que introduzia no meu vocabulário tal palavra, era como coisa do outro mundo. Aquilo era muito bem vindo. Era coisa fina. A palavra sempre me manteve junto a si. Tia Palmyra Tia Palmira comprou tudo por lá. Teria sido na Ilha do Governador? E enviou pelo Correio. Era um presente. Pacote registrado. Uma demora pra chegar. Naquele período que antecedeu o acontecimento, os assuntos iam e vinham e findavam alongados acompanhando-nos à costumeira prosa na calçada de casa e ade

Sagrados, como o fogo de Prometeu

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O lírio eucarístico veio da casa da minha infância, assim como vieram estórias que se tornaram história e que guardo até hoje. Minha avó materna tinha o dom, aquela coisa mágica, de não deixar nada morrer, de trazer o passado para o presente. Convivia-se com a maravilhosa presença dos que moravam distante, dos que haviam partido desta para outra melhor e daqueles, digamos, "bem antepassados". Todos eram alimentados por passagens contadas por ela, minuciosamente, onde antigos diálogos eram revividos – os que presenciara e outros, que sabia de ouvir dizer pela sua mãe -, sobre tipos físicos, as idiossincrasias, as opiniões de cada um, as atitudes e reações diante dos fatos da vida, suas maneiras e gestos. A recorrência neste caso é uma dádiva, quase e por vezes mesmo poética e fantasiosa, que torna heróis e heroínas nossos familiares.  Traziam-nos, pois, no dia a dia e para estar conosco nas comemorações da Semana Santa, nas celebrações do mês Mariano, nas festividade

Blog do Sávio Almeida: O sertão das bandas do Ipanema

Blog do Sávio Almeida: O sertão das bandas do Ipanema

Poesia

Vizinhos Minha mãe e eu percorremos casa por casa, trazendo seus mortos às portas. A rua é velha e a mesma. Os que morreram estão distraídos e conversam, atuando vida. Das três moiras, nós duas, fiamos e tecemos à ilusão, findos destinos tardios. Contando-os às dezenas. Deitadas em nossas camas, Eu e minha mãe vemos juntas, as lúgubres fileiras Enchendo as calçadas. Ei-los, os quais evocamos, Negando os fios que Átropos cortou.

Blog do Sávio Almeida: O sertão das bandas do Ipanema

Mais uma matéria oriunda do sertão alagoano, publicada pelo Campus/O DIA. Desta feita quem a assina é a escritora santanense Lúcia Nobre. Vale conferir! LEIA! DIVULGUE! COMPARTILHE! Blog do Sávio Almeida: O sertão das bandas do Ipanema

O que poderia ter sido

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Alzira me contou como o havia conhecido e lembrava bem como foi. Era um homem atraente. Avistara-o de longe, conversando animado em uma roda de amigos.  Naquela confluência de ruas no bairro de Jaraguá, nas imediações do Bar da Zefinha, acontecia o lançamento de um livro. Tinham ido para o mesmo evento. A memória a enganava?  Não. Os olhares se cruzaram. Lembrava bem que tendo passado pertinho dele e estando a alguns passos adiante, ouvi-o perguntar a alguém ‘quem é essa?’. Faz muito tempo. Muitos anos. Nem posso dizer que o conheci, Violeta. Eu o vi. Conhecia só de ouvir falar. Um homem tão festejado, não era para menos. Quando penso naquele dia, a minha vida desdobra até não poder mais. Fico imaginando que outro futuro teria saído daquela noite. Uma intercorrência que poderia ter mudado o meu percurso no mundo, ou então, descarte-se tudo, a ver que tudo não passa de hipotética ilusão. Vem daquilo de a pessoa achar que a vida que tem ainda é pouco. Um excesso de absurdas e h

Blog do Sávio Almeida: Rio São Francisco: lembranças dos lados de Pão de Açúcar

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À ordem daquele dia

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Saiu apressada do trabalho. Em pouco tempo estava na Rua do Sol. Adiantou -se até a Igreja do Rosário dos Pretos e entrando na travessa perpendicular a ela, caminhou apressada até o ponto de ônibus. Aquele dia seria o último a encerrar mais um ciclo de vida. Pensava nisso, quando de si mesma uma voz interior alertou-a para a urgência de medir a vida como um trajeto de avante à ré. Um absurdo quando somava as imagens do já vivido à profusão do tempo, meio que destoante do espaço onde tudo acontecera em sua vida até então. Como coubera ao tempo tanta ilusão e como o tempo tinha espaço para fazer tanto estrago na sua aparência? Estava ali, uma mulher, envelhecendo. Era como se os dois juntos fragmentassem, cada qual a seu modo, a sua história, cortando-a como a uma longa fita cinematográfica, para posterior montagem, em uma edição meio maluca. Tinha vez que se sentia atriz dirigindo a si própria, uma performance de dar gosto, e à maioria das vezes absolutamente entregue às surpres

De conversa em conversa

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Tempo de inverno. A mocinha no meio da rua sendo surpreendida pelos primeiros chuviscos, cobre os cabelos com o casaco, que é para não prejudicar o efeito da escovinha. Deus que me livre de achar isso uma besteira. Pra menina, ver o lisinho do cabelo desmanchar, seria um fim de mundo e a gente - eu me refiro a mim e a Josa -, entende dessas coisas. Mas Irene considera que tudo é uma besteira e perda de tempo. Quando a ouço dizer que vaidade, não essa da menina, mas aquela exagerada, que escraviza a pessoa, não é boa coisa, me sinto é muito aliviada. Se for por causa dessa intemperança, graças a Deus, nem Josa, nem eu, haveremos de nos demorarmos no purgatório. Iremos ser hóspedes do Paraíso e bem ligeirinho. Nós duas. Sei não como é isso, mas a nossa ideia de como ele deve ser, se parece. Um campo verde a perder-se de vista, com jardins enormes, cujas flores eu já as vi em uma porção de sonhos que tenho tido na vida. Não dá nem pra descrever de tão diferentes que são. Enquan

Quinta grandeza

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Estava dentro do carro fazendo uma viagem inesperada. Assim é que é bom, quando a gente não acerta nada e tudo dá certo. A estrada era de barro e muito esburacada. O caminho tinha paisagem de securas, porém exótica dada à vegetação típica do sertão. Do lado direito a agressiva e mesmo assim, bela flora. Do lado oposto, o rio seguindo seu curso. Experimentava e até que enfim, o sentido mais real do que queria dizer a palavra geografia.  Acertando-se às lembranças, viu-se na escola primária, o caderno cheio de anotações, e depois o penoso exercício de decorar o significado da palavra e suas extensões. Determinismo geográfico, os quatro pontos cardeais, as quatro estações do ano, os tipos de clima, os limites da pequena cidade, o número de seus habitantes. Flora e fauna. Os movimentos da Terra, seu eixo e a força da gravidade. Os astros, luminosos e iluminados. Em um daqueles dias em sala de aula, quando ao sol fora atribuído à ordem de quinta grandeza, e revelou-se ser ele u

Juntando os cacos

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Quando parei pra pensar naquela história, compreendi que tudo não passava de ilusão. A senhora acha isso mesmo, dona Violeta?  Perguntou Raulina, que entrou pela casa de portas abertas, sem nenhuma cerimônia. Nem sabia do que se tratava, mas daquele modo introduzia-se na palestra, um modo de falar daquele povinho mais antigo, para se referir à conversa. Tudo é palestra. Era bem verdade. Violeta estava sozinha e falara alto. Um costume que tinha, além de outro, pior, de ficar mexendo os lábios enquanto os outros falavam. Aquilo era ansiedade que fazia dela, a quem prestasse atenção, uma sofrível reprodutora muda da fala alheia. Pantomima. Era isso. Sobrava-lhe as repreensões de Aprígio. Sem contar que também dormia com a boca aberta, fosse onde fosse. É assim mesmo. Sou humana ou não sou? Quem quiser que sorria de mim. Ligo não. De jeito nenhum. Violeta usava de sinceridade. A de quem conhecia de si própria a persona, e tendo-a à mão, era consciente da maneira lógica de ser

Por falar em amizade, o senhor fique à vontade

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Tinha nada que ter dito o que disse. Mas falou. Depois ficou desconcertada, fazendo as obrigações pela metade. Concluí-las mesmo, não concluía nenhuma. Foi o embaraço de ter-se revelado tão carente, a quem até agora não se deixara conhecer de forma alguma, que fizera Violeta ficar desse jeito. Mas homem, como é que fui mendigar a amizade de seu Antônio? Que cara de pau a minha. Bem que minha mãe dizia ‘tenha sentimento, menina!’ Não sei falar com uma pessoa todo santo dia, sem fazer algum tipo de amizade com ela não, gente. Outra coisinha é que, quando estou alegre, digo. E quando alguma coisa me incomoda eu falo. Também sou de perdoar logo e lido com as espinhas de garganta, comendo um punhado de farinha seca e tomando um copo com água depois. Minha raiva é besta, passa fácil. Meu coração dá um jeito de se consertar ligeiro. Só quando a ofensa é grande demais, aí sim, eu fico remoendo. Mas dessa vez... que desgraça. Eu tinha que aperrear o homem ‘Seu Antônio, o senhor é tão frio

Amanhã já é ontem

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Foi não foi, e a gente volta a lembrar de umas pessoas. Agorinha mesmo lembrei de Tonho. Cabra baixinho, cabelo sempre pedindo tesoura, bigode invocado, boné e um andar ligeiro, ora puxando, ora empurrando o carrinho do pão. Chegava aqui na porta de casa e buzinava, esperando Josa vir abrir o portão. Ruim de conta, a gente tinha que fazer todos os cálculos. Contar os pães, fazer a soma, pagar, e dizer a ele quanto era o troco.  Mas, era um exímio farejador de chuva. Anunciava até as trovoadas. A gente pedia e ele investigava o tempo com calma, rodando os olhos como telescópio, céu acima e abaixo. Batia as pestanas bem devagar afinando-se com a sabedoria, ‘hoje não. Mas, amanhã, se prepare a senhora que vai chover’ . E chovia mesmo.  Maria é outra lembrança. Mulher de meia-idade, branca, forte, voz gutural. Vinha ter comigo, quase diariamente, lá pelas quatro da tarde - o sol ainda quente - vermelha como um camarão. Pedia uma coisa, eu dava e de imediato, já pedia outra. Aquil

Filosofia do Cotidiano

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Os barulhos foram chegando aos poucos. Passos rápidos encheram o vão estreito entre as casas. A água corria descendo alegre pelas grotas. Rua descalça, jardim de craibeiras, matinhos, pedregulhos. O olhar vindo da escada, registrou atento cada detalhe. Fixou em si mesmo, aquele instante, como se o tivesse fotografado e colado imediatamente nas páginas do álbum da alma do mundo, lá bem dentro dela. Coisas. Coisas corriqueiras e tão comuns. Eram de fato comuns, sem nada de extrordinário. Mas havia ali, algo que unia o ver dos olhos com o enxergar, que de tão profundo, trazia a sensação de mergulhá-la Hades adentro e de visitar Perséfone em sua morada de inverno. Ora, ora... até e aonde tal olhar suscitou uma travessia imediata por entre séculos! Mitologia pura a misturar os mundos e as realidades. Não fossem os passos que se aproximavam teria ido ainda mais longe.  Mas, retornou vendo o mundo recortado entre muros e vizinhanças pelo seu próprio olhar e recorreu urgente à verifica

O que não se pode pesar

Semana retrasada, eu ia dizer qualquer coisa a Aprígio, quando finalmente resolvi que o silêncio era melhor. Lembrei-me de uma passagem na Bíblia que diz que o sábio não joga conversa fora. Não que eu me ache sábia, sabe Zanza, mas é que não sei por que veio de algum lugar de dentro da minha cabeça, isso que considero como uma iluminação. Por que não? Pois bem, Hilário, aquele meu primo do qual lhe falei, foi me procurar lá em casa. Um abraço e tanto, até me beijou no rosto, duas vezes, com tanta avidez, que naquele momento senti que ele gostava pra valer de mim e pensei comigo mesma: É com ele que vou abrir meu coração. Você sabe... Essas coisinhas que a gente fica guardando esperando a pessoa certa pra contar, né Zanza? Comigo a coisa funciona assim: cada amigo tem uma particularidade. Tem daqueles que conto uma coisa, tem deles que eu conto outra. Como é que eu sei o que devo contar o que e a quem? Olhando a pessoa por dentro, mulher! Eu acho até que é um dom que eu tenho. N

Buraco Negro

O desejo de amor quer um canto para dois e planeja seu próprio universo. E à vontade de que passe a existir, cria na própria desordem uma ordem binária de zero e um. Navega-se sem barco, o leme inventado invertido, sobre um denso mar de palavras essa tela de letras,   em estrangeiros países de dramáticos sentimentos. As frases dialogam e são apagadas, Os traço de suas rotas evaporam. Que teclado inútil, que nem à memória dos toques seus afetos sobrevivem. Sobre os navegantes, a regra: nunca, nunca, haverão de se encontrar. Não há lugar a chegar como na dança de Maia. Ilusão que à impermanência de um pequeno planeta, um só gesto o exclui. Onde, únicos, pensam sim ou não apenas, sempre  à beira de um noves fora. Um. Que traga para o que é coisa alguma, o que bem poderia, não sendo zero, ser tudo. Eis-os, então. Navegantes, de uma mesma soma incompreensível Dois,  sozinhos em um buraco negro.