Perséfone


É assim. Quando o tempo perde a intensa luz sobre as coisas, quando os reflexos que pontuam o brilho diamantado vão sumindo da superfície de todos os lugares, alguma coisa destranca meu baú de palavras. Até então meus sentimentos, muitos, tantos, perdem a via de interlocução. Todo sentido é feito alma à alma. O dizer metafórico, o concluir, o por para fora é sagradamente impossível. É tão profundo e sacro que pronunciá-los, os sentimentos, é como profanar o silêncio entre o intocável e a materialidade. Mesmo assim longe de serem expressos, não perambulam. Guardam-se. 
Antes, eu tinha medo da escassez da escrita. Do papel em branco, da caneta descansando entediada sobre a mesa. E se a mim o sentir a alma das coisas tivesse sido negado? Besteira. Basta-me o tempo e o seu anúncio da constância do sol morno, os primeiros pingos d’água desenhando transparências na transparência dos vidros da janela, o ritual sonoro desse movimento, como um mantra ao coração, e sem equívoco, escapam pelas frestas da minha alma, um turbilhão de letras. Elas precipitam-se às minhas mãos, e eu as embaralho feliz. Todas as palavras que farei com elas são minhas e farão sentido. 
Aprendi com o tempo, que as palavras se guardam enquanto o que sinto, cozinha, paciente, no forno da minha existência. Maturo-o na primavera e verão, vendo as flores nascerem, vendo as diversas sementes serem lançadas na terra, pressentindo o renascimento das coisas postas em comum ao renascimento de outras. Até que se façam, outono e inverno e esse mergulho em Hades aconteça. É no sombrio que abro-me por dentro e, curiosamente, reencontro-me. Destranco a porta que torna tudo possível de ser escrito, enquanto transito maravilhada por tanto sentido.

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