ENTRE A VIDA E O TEMPO
Violeta acordou e ao olhar-se no espelho do banheiro, avistou-se no alto dos seus cinquenta anos. Tomou um susto. Tornou a olhar-se e reparou que o tempo continuava cumprindo impecavelmente o seu trajeto. Ela era prova disso: ' Estou na ante-sala de um lugar de mim que começo a conhecer agora'. Lembrou-se da infância, dos cheiros da sua casa, do mamoeiro empedernido lá no quintal, da goiabeira, do papagaio, das vozes e da segurança que sentia. Ainda fitando o espelho, pode ver-se correndo pelo corredor da sua casa, e o rosto sempre grave e de pouca conversa do seu pai, apareceu suavizado. Sobressaltou-se. Uma saudade, daquelas fininhas e sorrateiras, veio infiltrar-se nela. Violeta esfregou os olhos, saiu do banheiro e acorrentou-se as lembranças. Chorou.
A vida ainda nem começara. Mas a sensação que ela tinha, era a de que o tempo caminha de um jeito, enquanto a gente caminha de outro. ' O tempo é um deus, enquanto eu sou uma simples mortal' Sentiu alguma coisa parecida com angústia que ela, advertidamente, trocou pelo que chamou de sentimento de injustiça. 'Isso não é justo' Mas qual seria o acordo entre a vida e o tempo? Violeta quase desaba, porque viu-se diante de uma questão filosófica de grande monta. Tentava com essa pergunta, mergulhar em assuntos os quais não tinha competência. Nem ela, nem ninguém. Retornou a si desolada. 'A ciência não responde a tudo. Isso é um fato, e não há quem me convença da supremacia dela. Falta resposta. Falta muita resposta e sobra muita prepotência'. Então ocorreu-lhe um pensamento, por assim dizer, mitológico. E aí do fundo de algum lugar da memória, veio em sua mente, a poesia de Ricardo Reis ou era Fernando Pessoa? 'Besteira. Dá na mesma. Qualquer um dos dois me serve, que são a mesma pessoa'.
É assim, por costume mesmo, que Violeta transforma tudo em farinha do mesmo saco. Não percebe o privilégio do poeta português, em desmembrar-se em vários, e a cada um, imprimir um modo de poesia. Trouxe-a então a si: 'Não se resiste ao deus atroz que os próprios filhos devora sempre'. E de outro poema, 'Colhamos flores'.
Está aí uma solução. Colhamos flores. Eu nunca havia pensado nisso!. Mas que coisa, meu Deus?! Estou no topo de uma montanha e preciso descer. Não há mais o que subir. Não, dessa forma como eu vinha fazendo. Não. O tempo me determina uma coisa e a vida me chama a outra coisa. E eu digo a mim mesma: 'Está aí você, Violeta, numa enrascada' Numa grande enrascada, se do alto dessa montanha, você pensar a vida como vinha pensando. Mas eu estaria numa enrascada muito maior, se não tivesse chegado à compreensão disso. Portanto, sou sortuda. 'Colhamos flores'. Isso é filosofia. Coisa que se aplica entre o viver e o permanecer. Permanecer é pouquinho pra mim. O tempo é um deus inquestionável então, e imutável. E os deuses, minha filha, nunca mudam, são eternos em suas naturezas. Finita sou eu, que experimento a vida como uma fagulha com prazo para extinguir-se no tempo. Extinguir-se ou diluir-se? Porque se me extinguem, devo deixar de ser. Mas se me diluem, misturo-me ao tempo e começo de novo. Sou finita e por isso não me decido entre uma coisa e outra, porque mesmo que eu quisesse, não me cabe a escolha. Posso sentir raiva de Cronos, o senhor do tempo, mas, engraçado, não sinto. Não sei se o que chamo de injustiça dos deuses é mesmo uma injustiça. Respeito a ciência, mas tenho um pé atrás quando o assunto é a razão, pura e simplesmente. A ciência me é falha, e aqui pra nós, tenho medo de ser descoberta e exposta como uma pessoa ignorante. Me inclino à metafísica, aos mitos, à alquimia. O que sou até agora é uma costura entre a vida e o tempo. Sou a matéria que dá ao tempo a razão de ver-se a si mesmo, em mim, já que Cronos é infinito. Tendo a achar que é o senhor do tempo quem fenece. Sou-lhe necessária para afirmar-se como sendo. Sou eu que meço o tempo à Cronos. Faço-o com a minha vida. O tempo precisa de vida para sê-lo a si mesmo.
Violeta é chamada à consciência. Tece seu discurso filosófico. O discurso de Violeta. Aquele que se estabelece quando se chega ao topo da montanha, de onde se é convidado a descer. Descer para dentro da vida, propriamente dita. Subir ao contrário. Colher flores enquanto o tempo se precipita. Deixar tempo ao tempo. Sobe-se na descida. Nesse percurso é muito bom que se colham as flores. O efeito do tempo sobre nós é inevitável. O medo que dá, é que tenhamos, na subida, esquecido de plantá-las.
1. "Lembrou-se da infância, dos cheiros da sua casa..." Impressionante como o cheiro nos trás lembranças.
ResponderExcluir2. O temo é mesmo implacável. Não adianta lutar contra ele.Lembro-me de uma resposta de Mário Lago quando lhe perguntaram qual a receita de tanta longevidade. Ele disse:
- Fiz um acordo com a morte. Nem ela me persegue, nem eu fujo dela.
Belo texto! Belo título! Grande abraço.
Goretti querida,
ResponderExcluirA reflexão dos 50 anos é profunda e é o que mais tenho feito. São tantas mudanças, tantas constatações e o mergulho é fundo e às vezes dói, às vezes traz uma alegria. É a certeza do tempo vivido, junto com uma saudade.
Obrigada por compartilhar, também, comigo.
Beijos,
Graça Cabral
Puta que pariu! Que conto bom! Mobilizou em mim muitas coisas, tais como:
ResponderExcluirArthur Clark que, deslocando o modo como encaramos o tempo, diria que Violeta deu apenas 50 voltas ao redor do sol. Acho essa imagem da fugacidade fuderosamente fuderosa, tal como a que vc sugeriu:
"experimento a vida como uma fagulha com prazo para extinguir-se no tempo. Extinguir-se ou diluir-se? Porque se me extinguem, devo deixar de ser. Mas se me diluem, misturo-me ao tempo e começo de novo."
O conto também mobilizou - e me perguntei se o "colhamos flores" não é uma referência! (?) - uma associação com o "carpe diem" horaciano:
"Não interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti
que fim os deuses darão, Leucônoe. Nem tentes
os cálculos babilônicos. Antes aceitar o que for,
quer muitos invernos nos conceda Júpiter, quer este último
apenas, que ora despedaça o mar Tirreno contra as pedras
vulcânicas. Sábia, decanta os vinhos, e para um breve espaço de TEMPO
poda a esperança longa. Enquanto conversamos terá fugido despeitada
a HORA: COLHE O DIA, minimamente crédula no porvir."
(grifos meus)
Por fim, quero dizer que isso é muito tocante:
"Estou na ante-sala de um lugar de mim que começo a conhecer agora."
Parabéns!
Obrigado!
P.S. Goya levou gaia rsrsrs
Aeta
Comadre Go,
ResponderExcluirque bom saber que você continua em forma! Em forma de poesia... É estamos na idade de perceber que só Zeus vence Cronos. Colhamos flores!!! Grande beijo, sua comadre Círia
O tempo é a própria consciência, não?
ResponderExcluirLi seu novo conto e gostei muito. Esse tema do tempo é maravilhoso, não é? Poder percebê-lo com sua força transformadora é privilégio para poucos. Talvez nós estejamos nesse grupo. Somente o tempo nos dará essa certeza.
ResponderExcluirEstamos nesse momento em Ouro Preto Mg. Vc precisa vir com Waldson a esse lugar. É um maravilhoso encontro com a história e tantos artistas maravilhosos.
E a festa, vai fazer quando? Comemore tudo o que for possível. Quando nós retornarmos faremos outra festa, claro. Não podemos queimar nenhuma passagem de ano.
Sim, a propósito, vc conhece a canção de Caetano, Oração ao Tempo? Se sim, ótimo, se não, trate de ouví-la, urgentemente.
"Entre a Vida e o Tempo", é uma reflexão perfeita, profunda e de muita sabedoria. Acho seus CONTOS de uma clareza excepcional. Familiarizada com o tema, toca no mais profundo de nossos sentimentos. Todos nós cinquentões, sessentões, sentimos essas mudanças no tempo e de valores.Bate uma saudade, que ás vezes dói. Tudo isso é tocante... É a prova de que o tempo é a própria consciência de tudo que fomos e somos.
ResponderExcluir"A maior perda da vida é o que morre dentro de nós enquanto vivemos."
Parabéns e toda minha admiração. Beijos. Cila.
Simplesmente tão belo quanto colher flores!! E se tivermos esquecido de plantá-las?! O que encontraremos!? Encontraremos?!
ResponderExcluirSomos, de fato, uma costura entre a vida e o tempo. Uma personificação do tempo! Sem vida, não há tempo; sem tempo, não há vida!
Belíssimo, como sempre!!!
Um filósofo, não lembro qual deles, disse assim: " O tempo é um grande mestre; o mal é que ele vai matando todos os seus discípulos!".
ResponderExcluirA nostalgia, as lembranças da infância, dos que ficaram, dos que sumiram, dos que não sabemos se partiu para outra viagem, dos que caminham por outras estradas, dos que despencaram em alguma curva, dos que cairam pelas pontes,dos que se afogaram em águas rasas e claras,dos que esperam o tempo passar
para dormir um pouco mais, e dos que nunca, mas nunca mesmo sairão da nossa memória! Só está morto o que nunca nasceu! Um filósofo disse...não sei qual deles....