Com quase sessenta
Soledade tinha ido fazer uma
faxina no quarto de dona Aurora e vexou-se em pouco tempo de serviço. Encontrou
uma caixa de papelão com muito cacareco dentro. Frascos de loção secos, de
Leite de Colônia, embalagens de plástico de Leite de Rosa, Charisma, carretéis
de linha, mochilas de papel. Oh, mamãe, venha aqui, por favor. Dona Aurora que
mexia um doce de leite na cozinha, deu descanso à colher de pau sobre um pires,
e sem tirar o avental, caminhou com passos ligeirinhos e sem arrastar os pés
até o quarto. A filha, impaciente, quis tirar satisfação sobre aquele troço
todo, que à primeira vista, desnecessários, só servia para atrair baratas. Para
que tanto lixo guardado, mamãe? Vamos jogar isto tudo fora. Dona Aurora, do
alto de seus mais de setenta anos, encheu as ventas de fogo e correu os olhos
dentro das órbitas. Mas... encheu-se de calma e sem alterar a voz, explicou coisa por
coisa que ali havia juntado. Percebeu com a mesma calma, prêmio daquela
paciência aprendida com os anos, que nada do que advogou, havia modificado o
julgamento feito pela filha. Pois, o que se haveria de fazer? Fincou o pé no
chão e com voz firme, declarou: tendo serventia ou não, está decidido; fica
tudo como está. E os cacarecos ficaram.
Em outra ocasião, pelos idos de
1980, Merandolina se referiu às amigas de minha avó como velhinhas, quando as
encontrou na calçada em animada conversa, e dona Mercês protestou, ‘ velhinha,
não’. A intenção não era a de ofender, já que tinha a sabedoria da velhice como
um prestígio. Mas, ofendeu sim. Decerto, dona Mercês não enxergava as vantagens
recebidas ou não via coisa boa nenhuma nelas. Quem sabe detestasse a condição que
a idade a obrigava a confrontar, pois a ver sua reação, para ela envelhecer
deveria ser aviltante. Um insulto. Chateada, Merandolina tentou contornar o que
havia dito, mas é sabido que palavras ditas não retornam de onde saíram.
‘Estamos velhos, minha comadre’.
Foi o que me disse João, quando pelo telefone falei, parabéns compadre, muita
saúde, vida longa. Essas coisas que se dizem aos aniversariantes. Olhei para minhas
mãos que não me deixam incerteza. Enrugadas e a caminho de ficarem ainda mais
velhas, tiram dos meus dedos a graça dos anéis e certa agilidade. Delas, caem-me
as coisas. A colher, o prato que tinha começado a enxugar, o pente, o açúcar do
açucareiro, palitos de fósforo. Não protestei. Reclamei de uma viagem que
tínhamos nos prometido com trajetória traçada a Monte Alegre de Sergipe, Piranhas, Penedo, Ilha do
Ferro, e não fizemos. Seu Neguinho me havia dito muitas vezes que se chega em
uma idade onde não há mais tempo para certas coisas. Minha caixa de vontades e
desejos ainda transbordam. Meus livros são muitos e a minha consciência sentirá
culpa se não os ler a todos. Da viagem, João me garantiu que ainda a faremos. Mas
o resto é comigo.
No espelho onde penteio os cabelos, a alma fura com sua brilhante luz meus dois olhos, e sai por eles. Branca. Novinha em folha, alegre de me trazer viva a lembrança recente de ter visto o balanço das folhas, os cachos de flores lavanda das tumbérgias, o ipê amarelo do jardim, os sagüis, o caminho de pedras até o quintal. O vento fazendo as roupas correrem do varal. A voz da vizinha dos fundos, e quando seu Beto disse à mulher, que deixasse de tirar o juízo dele e arranjasse quem fizesse o conserto do telhado, que aquilo ali não era com ele. Aquela mulher idosa, com quase sessenta anos, baixinha, que da calçada chamou Aprígio e falou assim, ‘o medo que eu tenho é dessa craibeira cair em cima do muro do senhor’ Você agradeceu a ela, Aprígio?
E quando dona
Clarice me contou, nos mínimos detalhes, que apanhou muitos seixos no chão. Tinha
ido em uma viagem para um casamento em Canindé de São Francisco. Eram pedrinhas
de vários tamanhos e em grupo de cinco. Encheu um dos bolsos. E que flagrada
pelo marido ele havia dito: Eita! Que está com mania de gente velha. Para que
tanta porcaria? Já não acha pouco a bagunça que tem em casa sem querer jogar
fora? Ele também tendo seus bagulhos. Tem até graça, ela disse. Felizmente, que
o dito entrou por um ouvido e saiu pelo outro, e as pedrinhas vieram com ela
para casa. Qualquer dia eu mostro à senhora. Para que queria mesmo? Pensou e
pensou. Depois eu digo, dona Violeta. E voltou apressada do meio do caminho, tinha lembrado, para
dizer que eram para ela ensinar aos netos, como se brinca o jogo de pedras.
Dona Aurora veio me dizer, que Soledade
voltou a tocar no assunto da caixa com inutilidades. Tem jeito uma coisa
dessas, dona Violeta? A menina cismou. Veio com a estória das baratas de novo e
que o quarto ia ficar mais arejado. Que a saúde da senhora, mamãe, que já tem
idade, merece esse cuidado. Eu, novamente, sem me alterar, ‘o que você está me
dizendo é que a minha caixa incomoda? Porque a mim, não. Incomoda, mamãe. E por
que, Soledade? É muita coisa velha. Se o problema é esse, minha filha, aproveite
e me jogue fora também.
Parabéns Goretti. Eu gostei muito. Eu me vi fazendo a mesmo coisa com a minha mãe! Daqui a pouco dirão a mesmo coisa de nós. Como dizia Belchior: " minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". E vamos em frente...
ResponderExcluirQue maravilha, João! Obrigada e continue me visitando!
ExcluirBelo texto , Goretti. Vi nele tantas pessoas que conheci ao longo do caminho e a mim, inclusive, quando vez ou outra olho as coisas que guardo e que só a mim têm um sentido específico. Várias vezes me pus a pensar se quando meu olhar não estiver a repousar sobre tudo aquilo, certamente terão novos ressignificados e deixarão de ocupar os espaços onde hoje estão. Mas é assim que caminha a humanidade. O triste é quando (ou se) perdermos por completo o sentido da utilidade. Aí nos veremos a nos expressar como a frase final de dona Aurora.
ResponderExcluirParabéns pela crônica, que me foi indicada por meu amigo João Neto, com o qual tive o prazer de trabalhar em Santana do Ipanema.
Lembro de você e Waldson por lá.
Muito bom mesmo, receber esse retorno seu. Fico feliz que tenha lido e gostado da prosa. Convido-o a passar mais vezes. Fique à vontade! Pois é... envelhecer no pensamento e sob o estigma da nossa cultura, é como perder o prazo de validade. Terrível. Exatamente qdo temos tanto para ensinar ais mais jovens... Muito grata e um forte abraço. Meu e de Waldson.
ExcluirÉ verdade minha comadre, lindo texto. Temos que realizar essa viagem, quem sabe até de bicicleta? Daria para passar no Paquiderme, Quibanzê, Chifre do Bode, Novo Gosto, Japão………….
ResponderExcluirChico, você é gente boa demais!!!! Vamos. Vamos fazer essa jornada!!!
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