Um sentido novinho
Os
gatos eram muitos e passaram correndo pela cozinha fazendo um escarcéu, igual
àquele dia quando Dionê, quase sem fôlego, veio até nossa casa contar que Belmiro
anoiteceu e não amanheceu. Tinha ido embora. Naquele mesmo dia, Nena havia
comprado uma nova máquina de costura, e escreveu no fundo de uma daquelas
gavetas estreitas, com caneta esferográfica, ‘hoje, 7 de julho de 1966, Belmiro
de seu Afonso, foi tentar a sorte em Santos. Não tinha necessidade daquele alvoroço todo, mas Dionê achou que era novidade. Saber,
Nena já sabia.
No dia
anterior, Ofélia, mulher de seu Expedito, chamou-a pelo muro, e disse entre dentes, a
notícia que nem merecia aquele tom de fofoca, ‘diz que o rapaz vai embora pra
São Paulo’. Já vai tarde. Quem falou isso, menina? Não sei, mas que tinha
ouvido, tinha sim. Minha mãe benzeu-se, e quando ergueu o olhar e eu vi neles
aquela expressão dos santos nos altares da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, não
sei porque, lembrei, comparando mal, Nossa Senhora da Assunção cheia de
candura, olhando o céu rodeada de anjinhos. Isso faz tanto tempo e agora veio
a mim como uma rede de arrasto que sai da água cheia de peixe.
Hoje
mesmo à determinada hora, de quando eu encho a cabeça com mil pensamentos,
Salomão telefonou, que era para eu descer e fechar o portão da garagem. Ele tinha
esquecido aberto. Não era a primeira vez. O vizinho do lado tinha ligado para
ele avisando. O que fez muito bem, aquele favor livrou-me de aborrecimentos.
Vai que entrava algum confiado, e levava de uma vez só, os meus cactos? Não ia
ser coisa boa mesmo. Eu vivo alertando todo santo dia, que você Salomão, não
saia antes de ver se o portão está mesmo fechado. Mas, não. Ele faz assim de
caso pensado, para me chatear, para dizer que quando o assunto é homem é perdido dar ordem. Idiotice
dele, que eu nem gosto de disputa, nem de perder tempo com quem não entende, que
onde há demonstração de poder, o amor passa longe. E passa mesmo. Uma segunda-feira dessas
me chamou a atenção meu compadre Zezinho e minha comadre Maria. Deu gosto de
ver a cumplicidade entre eles, que nunca ouviram falar nem sobre igualdade
entre os sexos. Era coisa de alteridade mesmo, genuína. Naquilo, eu acredito.
Amor genuíno, livre de porque isso e porque aquilo.
Quer
que eu diga uma coisa? Seu Agenor, homem cheio das intelectualidades, faz feio
quando ninguém está vendo. Passa por gente cem por cento, generosa. Há quem confunda inteligência com honradez. Angelita me contou tanta
presepada. Pois eu pensava que em se tratando de um homem já idoso, tinha
acumulado virtudes e não era dado a subterfúgios e aventuras como um rapazinho.
Quem diria. E vive nas rodas defendendo os direitos das mulheres, se passando
pelo que não é. É preciso ter sentimento legítimo para alçar bandeira por isto
ou por aquilo. Humanidade. Um fingido, isso sim. É o que ele é. Isso é o que eu
chamo de dissimulado. E então, Angelita? Astucioso. Sem nobreza. É difícil a gente ser inteiro em tudo, criatura. Mas, decência é primazia
ou não é, Alzira? É.
Esses
tempos bicudos como estão, me desafiam a adormecer a poesia, porque têm me
ameaçado a esperança. Eu olho o mundo com uma agonia que só vendo mesmo.
Salomão me diz que penso muita coisa perdida. Que faço conjecturas à toa. Todo
pensar sobre alguma coisa além da sua aparência momentânea é filosófico? Se for ele
não enxerga por aí. Quando eu vejo uma coisa, e não entendo o que ela está me
dizendo, sinto secura de alma. Tenho as palavras, mas se perder a lindeza como
vejo, perco o modo de dizer o que é. Perco tudo. Desço ao purgatório. Até pedi;
meu Deus, não me prive de ver beleza onde não tem, senão fico no escuro.
Concede-me as cores que iluminam meus olhos, para que meu coração enxergue a
poesia e minhas palavras as escreva. Então, vem uma vozinha e me convence, olha
aqui Alzira, se você não conhecesse lugar habitado, não ia saber o que é
deserto. Pois não é mesmo? Um dia começa com o sol clareando o mundo. Começa
parecido com o dia anterior, e no decorrer dele, tanta coisa acontece. Quando a
minha mãe ergueu os olhos como uma santa, eu entendi que ela me amava, apesar
do modo torturante como cortava minhas unhas. A culpa era da tesoura afiada
demais, que me machucava a ponta dos dedos, ou das lentes dos óculos dela, já vencidas. Eu
vi tanta beleza naquela manhã, que a poesia me deu um sentido novinho e até me curou de tanto rancor que eu sentia.
Primeira vez por aqui, tia... Suas palavras trazem sua voz no pensamento, é um jeito de chegar mais pertinho de vc! Bjooooz!
ResponderExcluirObrigada querida! Volte sempre! Prazer enorme em tê-la por aqui! Beijão!
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