MarGarida

As flores fenecem cedo. Você não sabia? Só pude entender agora, depois de chorar por dentro, a sua seiva interrompida no caule, as suas pétalas, caindo no decorrer da semana. Os meus últimos signos da infância somem-se na lembrança dos fundos da casa vizinha. A lenha, o fogo, o lambe-dedos quentinho, a sua voz de vegetal e jardim, batendo arroz num pilão de madeira. Suas mãos ossudas de longos dedos morenos. Os caminhos do inverno, a lama, o quintal da casa onde íamos buscar o leite todas as manhãs. A sua voz me chamando por cima do muro. Só nós duas saberemos eternamente do que isso trata. Porque vivemos num tempo quase encantado, que parecia eterno, na sala, nos quartos, nos bibelôs, nos móveis, no rádio antigo, nas histórias de trancoso, na tosse persistente de Madrinha. Eu era pequena para entender o tempo.

Vivi minha infância em seu colo. Vivi a calçada, o mundo incorruptível da Avenida Bráulio Cavalcante, onde diante da folhagem parada das árvores, apenas nós duas balançávamos numa cadeira, fazendo vento e lirismo. Tecendo vida. Vivi, por você, o ciúme que as crianças têm das outras: meu objeto de exclusividade amorosa. Seu colo era para ser meu. As histórias que você contava, eram para serem só minhas. E uma vez, aquela de morrer - se cantasse uma música -, me fez chorar antecipadamente a sua. ‘Brincadeira minha, menina, chore mais não!’
Dizia isso tão feliz da minha afeição...

Garida, Você, em meu coração festeja essas lembranças que me doem agora, em meio a folhas, borboletas, grilos e formigas. Meu jardim sente a sua falta. Sentirei a sua ausência, como a de uma flor efêmera, de raríssima beleza e aroma. Quisera poder recolher suas pétalas, recolocá-las, recompor quem você é. Minha saudade não se pode medir nem pesar, nem as palavras sequer sabem dizer. Uso a minha dor, somente, e agradeço a vida, pelo seu colo, seu carinho, pela semente que foi plantada em mim e fez brotar a flor, minha Margarida, a mais bonita que já conheci e amei.


Comentários

  1. Seus contos sempre me dão uma saudade tia.
    Gostei muito.

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  2. Estou sempre aqui para ler seus contos e me orgulhar da amiga. Parabéns, Goretti!

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  3. Imagine só que a vida não é só destinos, e sim caminhos! Lendo esses contos saudosistas, lembrei-me de uns discos que eu ouvi há três dias atrás....BANDA DE PAU E CORDA, FLAVIOLA E O BANDO DO SOL, EDNARDO, XANGAI, PAULINHO NOGUEIRA e um bocado a mais....As saudades de um tempo que não volta, que não se verá mais que não seja nas memórias de outrora, mas na claridade do que foi, que é e que será! Enquanto se ouvir palavras escritas deste estilo interiorano, sempre ouviremos O ROMANCE DA LUA LUA! Que assim seja!

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  4. Cada vez que leio os seus escritos mais me emociono e fico feliz da mulher linda que você se transformou...Ouvir suas palavras transcritas em prosa poética é conversar um pouco com você e absorver a sua sabedoria.

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