SOBRE CASAS E PESSOAS
Foi aqui onde ouvi o tamborilar da chuva no telhado. Antes, uma ventania daquelas que anunciam que vai chover, espalhou poeira fininha sobre mim e sobre as coisas. Limpou as telhas, derrubou as aranhas caseiras e suas teias e sujou a casa. A casa. Essa, com porta de entrada bem alta, pintada de verde bandeira. Essa, cheia de quartos, corredor, cozinha, quintal e meninos barulhentos. Estou diante da memória que tenho dela, e assim a salvaguardo dentro de mim, pois que já não existe desse jeito. Mudaram-se as coisas e as pessoas tomaram rumos diferentes. O cheiro forte do cigarro de palha de José espalhou-se no tempo e diluiu-se dentre outros cheiros. Não tem mais quem o fume. José morreu esse ano, assim, de repente, e levou consigo aquele cheiro insuportável que enchia a cozinha. Velho enxerido e cheio de saimentos, nem pensei que fosse ter saudades dele, mas sinto. A sua intrigante presença me faz falta, porque perdi de quem sentir a raiva costumeira, viciada, alimentada por mim, eu mesma, dando comida a distúrbio emocional em dias marcados, todas as segundas-feiras. Josefa também sumiu. Foi morar na capital, e longe das amarras e das regras de cidade pequena, revelou-se. De sonsa que era, debandou. Caiu na buraqueira, como dizia José, cheio de suspeitos olhares, todos por sinal, perniciosos. Velho sem-vergonha aquele. Andou por aqui outro dia, vestida num short curtíssimo, faiscando de lubricidade. Dando o que falar ao povo. Lilice não gostou ‘tá parecendo mulher vulgar. Entrou na padaria comigo, eu constrangidíssima. Fazendo vergonha à família toda’ O que pensa Josefa sobre o que é ser eternamente jovem? Depois dos quarenta, expressar juventude não tem que necessariamente ser exposição do corpo, tem? Taí, não tem! Ela mesma respondeu e eu acenei positivamente com a cabeça. Aí, eu só de provocação, 'Não tem, mas no entendimento dela, tem. E daí?' 'E daí o quê? Isso é lá jeito de gente direita?!'
Essa casa é outra. Instala-se sobre a lembrança da antiga. Naquela de outrora, Celeste caminhava ligeira sobre o piso vermelho de cimento, sempre impaciente, ansiosa e angustiada, dando ordens, usando de uma sinceridade cruel, punitiva e de exigências humanamente impossíveis, ao dizer o que pensava sobre os outros moradores e suas atitudes. Auto-suficiente, dispensava companhias. Nessa casa de agora, com piso de cerâmica, é levada por Zulmira. É preciso que alguém ande por ela, os lugares que deseja ir. Perpetua em si mesma, sofrimentos desnecessários, com medo de perder companhias. Priva-se, mesmo sendo capaz, de dirigir a própria casa. Precisa estar com gente por perto, senão não caminha. O tempo parece ter revirado a estabilidade das coisas e dos lugares-comuns. Alterou nossas certezas. A vida mudou o curso e os próprios significados a que nos apegamos carecem de revisão, de nova alma. De fé. Pois é - nós as mulheres -, eu, Lilice, Josefa, Zulmira e Celeste, como deveremos entender a passagem do tempo? Como aceitar de forma sensata e sábia que tudo muda? Como tirar-lhe proveito? Para a alma, qual o valor da juventude? Depois dos quarenta anos, e mesmo antes dele, como continuar sendo jovem? O corpo é o único local onde a juventude tem que ser eterna? A mulher não tem uma história enquanto ser social a ser contada e respeitada? Coitada de Josefa, tão deslocada dela mesma, tentando retornar à juventude dentro de um shortinho, com medo de encarar a realidade e por isso mesmo, perdendo a chance de estar fortalecida, feliz do seu lugar de mulher, pois então!. Se deixar render à ideologia da estética do corpo, dentro da perspectiva de mercadoria? Será que essa mulher pensa? Sabe pensar ou pensam equivocadamente por ela? Um bando de mulheres iguais a passarinhos desavisados em direção à rede?
Por sobre nós, o céu ainda é azul e cheio de nuvens, nesse tempo de verão. Além de nós, as árvores envelhecem na agonia lenta das artroses que retorcem seus galhos. Nós deixamos a nossa antiga casa segura, para trás ou ela se transformou para nos causar o estranhamento necessário, expulsando-nos em favor do crescimento de nós mesmas? Acomoda-se agora um silêncio dentro da gente que espalha um silêncio fora de nós. Agudíssimo. Às vezes doloroso. Reflexivo.
Quebro o vazio de palavras e arrisco expor o meu: Hoje estou triste. Uma saudade de mim mesma, parece. Até de José, aquele chato. Os dias de segunda-feira, sem cheiro de cigarro de palha... Mais uma pessoa das que eu conhecia se vai. Nem se despediu. Mais um morto para minha memória. O safado era tão cheio de gracinhas, que pra ter morrido da forma como morreu, só pra chatear, é uma quase-certeza que tenho. Ao meu silêncio revelado, Celeste riu, riu e riu até ficar vermelha. Contaminou-nos. Fomos acostumadas à alegria do riso, mesmo quando o silêncio nos atinge. Quebramos o do lado de fora, para que ele desestabilize o do lado de dentro. É razoável estar-se igual em ambas realidades. A gente se equilibra, se firma, se ancora nesses momentos.
Estamos na calçada, à porta da casa que nos ocupa, e ela, mais do que fora, mais do que parece ser a construção, é dentro da gente o signo da temporalidade da vida. Viver é estar mudando de casa. Tanto da morada física, quanto da psicológica. Às vezes, e não raro, mudamos de casa, dentro da própria casa. Saímos dela sem sairmos dela. Dá para entender isso? Nosso paradigma é de repente, e para o nosso espanto, a imagem primordial daquele lugar, onde começamos entender o abrigo e o lar. Duas faces da mesma moeda. Carregamos e somos carregados por ela durante todo o tempo que nos acolhe, e que a nossa lembrança a abriga, dentro de suas paredes, suas salas, quartos, seu quintal, um teto, sua calçada. Mesmo quando a sua arquitetura muda, a minha casa sou eu. Diversa em mim. Tão surpresa dos acontecimentos, multifacetada e dinâmica, quanto a própria vida.
Essa casa é outra. Instala-se sobre a lembrança da antiga. Naquela de outrora, Celeste caminhava ligeira sobre o piso vermelho de cimento, sempre impaciente, ansiosa e angustiada, dando ordens, usando de uma sinceridade cruel, punitiva e de exigências humanamente impossíveis, ao dizer o que pensava sobre os outros moradores e suas atitudes. Auto-suficiente, dispensava companhias. Nessa casa de agora, com piso de cerâmica, é levada por Zulmira. É preciso que alguém ande por ela, os lugares que deseja ir. Perpetua em si mesma, sofrimentos desnecessários, com medo de perder companhias. Priva-se, mesmo sendo capaz, de dirigir a própria casa. Precisa estar com gente por perto, senão não caminha. O tempo parece ter revirado a estabilidade das coisas e dos lugares-comuns. Alterou nossas certezas. A vida mudou o curso e os próprios significados a que nos apegamos carecem de revisão, de nova alma. De fé. Pois é - nós as mulheres -, eu, Lilice, Josefa, Zulmira e Celeste, como deveremos entender a passagem do tempo? Como aceitar de forma sensata e sábia que tudo muda? Como tirar-lhe proveito? Para a alma, qual o valor da juventude? Depois dos quarenta anos, e mesmo antes dele, como continuar sendo jovem? O corpo é o único local onde a juventude tem que ser eterna? A mulher não tem uma história enquanto ser social a ser contada e respeitada? Coitada de Josefa, tão deslocada dela mesma, tentando retornar à juventude dentro de um shortinho, com medo de encarar a realidade e por isso mesmo, perdendo a chance de estar fortalecida, feliz do seu lugar de mulher, pois então!. Se deixar render à ideologia da estética do corpo, dentro da perspectiva de mercadoria? Será que essa mulher pensa? Sabe pensar ou pensam equivocadamente por ela? Um bando de mulheres iguais a passarinhos desavisados em direção à rede?
Por sobre nós, o céu ainda é azul e cheio de nuvens, nesse tempo de verão. Além de nós, as árvores envelhecem na agonia lenta das artroses que retorcem seus galhos. Nós deixamos a nossa antiga casa segura, para trás ou ela se transformou para nos causar o estranhamento necessário, expulsando-nos em favor do crescimento de nós mesmas? Acomoda-se agora um silêncio dentro da gente que espalha um silêncio fora de nós. Agudíssimo. Às vezes doloroso. Reflexivo.
Quebro o vazio de palavras e arrisco expor o meu: Hoje estou triste. Uma saudade de mim mesma, parece. Até de José, aquele chato. Os dias de segunda-feira, sem cheiro de cigarro de palha... Mais uma pessoa das que eu conhecia se vai. Nem se despediu. Mais um morto para minha memória. O safado era tão cheio de gracinhas, que pra ter morrido da forma como morreu, só pra chatear, é uma quase-certeza que tenho. Ao meu silêncio revelado, Celeste riu, riu e riu até ficar vermelha. Contaminou-nos. Fomos acostumadas à alegria do riso, mesmo quando o silêncio nos atinge. Quebramos o do lado de fora, para que ele desestabilize o do lado de dentro. É razoável estar-se igual em ambas realidades. A gente se equilibra, se firma, se ancora nesses momentos.
Estamos na calçada, à porta da casa que nos ocupa, e ela, mais do que fora, mais do que parece ser a construção, é dentro da gente o signo da temporalidade da vida. Viver é estar mudando de casa. Tanto da morada física, quanto da psicológica. Às vezes, e não raro, mudamos de casa, dentro da própria casa. Saímos dela sem sairmos dela. Dá para entender isso? Nosso paradigma é de repente, e para o nosso espanto, a imagem primordial daquele lugar, onde começamos entender o abrigo e o lar. Duas faces da mesma moeda. Carregamos e somos carregados por ela durante todo o tempo que nos acolhe, e que a nossa lembrança a abriga, dentro de suas paredes, suas salas, quartos, seu quintal, um teto, sua calçada. Mesmo quando a sua arquitetura muda, a minha casa sou eu. Diversa em mim. Tão surpresa dos acontecimentos, multifacetada e dinâmica, quanto a própria vida.
Belíssimo... uma leitura civilizatória, eu diria. Sim, ler, para mim, é civilizar-se. É deixar as palavras reverberarem em nós durante todo o dia, como que a domesticar os nossos instintos; como que a suavizar o bárbaro que há em nós (nos libertanto, por algum intervalo que seja, da nossa própria selvageria... ou, fazendo uso da sua metáfora, arejando a casa...).
ResponderExcluirPois é, seus textos nos civiliza através do resgate da dignidade dos pequenos gestos, das pequenas coisas, da nossa experiência comum, humana. Muito bom! Vc é talentosa: brinca com as palavras, com as casas e com as pessoas.
Obrigado.
Abraços..
Belo Conto ,como tantos outros seus contos .
ResponderExcluirInteragindo consigo ,peguei-me imaginando ;minha casa seria uma embarcação;eu,enquanto velejador,
sigo á merce dos ventos.Enfrentando tempestades e calmarias.As vezes , a deriva...
"Coitada da Josefa, tão deslocada dela mesma..." - De um jeito diferente, tô bem assim ultimamente, deslocada de mim mesma... Tia Gó, fechou o ano com um conto lindo... Muito bem escrito (como sempre né, é claro.) Um cheiro do tamanho do mundo...
ResponderExcluirPS: Tá linda de mamãe noel na foto! rsrsrs
lindo e me levou a um forte e agradavel sentimento d emelancolia saudosista,de todas as casas as quais ja apssei,e historias que se foram,so não no pensamento.thiago ribeiro da paraiba filho de ivone.
ResponderExcluirImagine, senhorita, estava eu lendo esse lindissimo conto, ao mesmo tempo que , senhorita, eu ouvia BANDA DE PAU E CORDA, QUINTETO VIOLADO, FLÁVIOLA E O BANDO DO SOL, EDNARDO e MANO-CAÊ, quando me bateu o saudosismo, e pensei, comigo mesmo, a vida é o infinito, dá voltas como o carrossel e a roda gigante que vejo na praça do meu bairro, nas festas da Igreja Católica! Até hoje pergunto oa meu pai se tudo na vida tem alma! E ele diz que sim! Tá, eu já sabia antes de nascer!
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