Depois da Vida: um filme para além da morte
No final da década de 1980, assisti Blade Runner (1982), de Ridley Scott. Esse filme me deixou impressionada pela maneira como trazia a discussão sobre o caos resultante da modernidade, como promessa para a emancipação do homem contemporâneo. E não apenas isso. Mas o olhar com vieses múltiplos onde como não poderia deixar de ser, estão presentes a filosofia, a antropologia, sociologia e as questões da religião, dentro de um contexto futurista, que, de passagem, à época do lançamento do filme, já nos alcançou, me intrigou bastante. O confronto paralelo que remonta as perguntas sem resposta da criatura ao seu criador é culminante. Mexe com qualquer um. De lá pra cá, sempre revisito o filme e descubro a cada leitura refeita, novas percepções sobre ele.
Agora me debruço sobre outro espetáculo do cinema. Desta vez, Depois da Vida, (1998) do diretor japonês Hirokazu Kore-Eda. Fazendo um paralelo entre ele e Blade Runner, ambos propõem a quem vê a obra cinematográfica, momentos distintos que acabam por promover dois tipos de discussões que se complementam. No primeiro, somos convidados a entrar no mundo aonde a realidade da reprodutibilidade técnica chega à produção de um ser idêntico ao humano, feito a partir da engenharia genética. Ao ultrapassarmos o limite da divinização da criatura, inevitavelmente nos precipitamos na orfandade de Deus, como criador. Reproduzimos pela segunda vez, a nossa saída do paraíso, sem possibilidade de retorno. A racionalidade interrompe o mistério e castra o mito, definitivamente.
No segundo filme, o convite é feito a partir de um mergulho do homem para dentro de si mesmo. Logo de início, após a morte (depois da vida), as portas se abrem e as pessoas vão chegando. Há uma porta de entrada e lá fora há apenas neblina. Tudo é suave, e morrer não parece diferente de viver, apenas, é preciso que se escolha uma lembrança para seguir adiante. Seguir adiante, aí sim, é como um teste, como a chave que vai abrir outro portal. O modo como a pessoa se conduziu através do experimento da vida, terá repercussão na hora da escolha da lembrança: indecisões, dúvidas, temores e apreensões, são indicativas da situação que envolve cada um dos personagens, nos mais variados comportamentos.
Em qualquer parte do planeta, as mesmas questões que envolvem a vida do ser humano são colocadas, evidentes e paradoxais. Cada pessoa que morre é chamada a reviver todo o tempo vivido. E aí, novamente, somos confrontados através das personagens com nossas escolhas filosóficas, antropológicas, sociológicas e religiosas, que são reflexos dos caminhos trilhados, do tempo que gastamos com a existência. Estar consciente do processo, de existir, de escolher enquanto se está vivendo, faz a grande diferença, no instante em que se é chamado para significar a vida, em apenas uma lembrança.
Percebe-se a importância dos cinco sentidos, como fator preponderante na fruição dessa jornada. Eles funcionam como janelas do corpo, como antenas que nos ligam à alma. Extasiam-nos quando conseguimos partir das sensações corpóreas, como possibilidades da materialidade, para adentrar às experiências anímicas. Quando ampliamos a nossa consciência, para além do emocional, indo aos sentimentos mais profundos. A descrição dos mortos acerca das sensações através dos toques físicos, dos cheiros, dos gostos. Tudo isso vai crescendo no decorrer do filme e as cenas revelam que em qualquer parte a vida se faz e acontece muito mais pelos pequenos feitos que pelos feitos grandes e vistosos. A vitória e os louros estão para aqueles que ampliam seus sentidos. Para os que sentem a existência. Para os que cheiram e que olham e que abraçam e que vão se construindo dentro da condição humana e dos seus limites.
Mas a premissa principal, o ponto de partida para a escolha e o sentido de uma única lembrança que justifique a existência é o amor. E nesse aspecto, Hore-Eda é simplesmente fantástico, porque essa necessidade se apresenta sem ser nomeada. A gente é chamada a refletir sobre isso. A cada morto, o qual é solicitado que se escolha a sua lembrança, somos remetidos às nossas. O que eu escolheria para seguir em frente depois da vida? Do que eu me deixaria impregnar como bálsamo ou como troféu para seguir pelos mistérios? O que valeria para pontuar a minha existência em detrimento a todas as outras vivências que tive?
Novamente, num paralelo com Blade Runner, a mesma questão da memória aparece para os replicantes, só que através de recursos fotográficos falsos. A memória dentro desse expediente, serve apenas para forjar uma trajetória da vida que não aconteceu e que por isso mesmo, não representa a história de uma existência. No caso dos replicantes, é um passaporte para burlar a sua criação sem os processos evolutivos, sem os laços afetivos, sem a presença do divino. As lembranças tão buscadas por eles é uma tentativa de humanizar-se: Um objeto humano, criado à imagem e semelhança do próprio homem, tentando se sobrepor à sua condição de simples produto mercadológico, com prazo de vencimento.
Em Depois da Vida, a criatura, criada à imagem e semelhança do seu Criador se vê diante dessa situação, sendo exposta a uma realidade antagônica a outra, proposta em Blade Runner: a exigência de percorrer a memória para recontar a si mesmo, sua própria história, como dádiva dos mistérios de Deus. Ele precisa justificar a sua existência, num único instante de felicidade, como condição primordial para retornar ao paraíso.
Hore-Eda sugere que a vida, mais que um filme, é a metáfora onde a linguagem do cinema é por excelência, a lembrança em forma de imagens. É também a sala de projeções onde a memória do próprio tempo nos registra. Somos os atores da vida, podendo ser ou não, os protagonistas da arte de existir.
Agora me debruço sobre outro espetáculo do cinema. Desta vez, Depois da Vida, (1998) do diretor japonês Hirokazu Kore-Eda. Fazendo um paralelo entre ele e Blade Runner, ambos propõem a quem vê a obra cinematográfica, momentos distintos que acabam por promover dois tipos de discussões que se complementam. No primeiro, somos convidados a entrar no mundo aonde a realidade da reprodutibilidade técnica chega à produção de um ser idêntico ao humano, feito a partir da engenharia genética. Ao ultrapassarmos o limite da divinização da criatura, inevitavelmente nos precipitamos na orfandade de Deus, como criador. Reproduzimos pela segunda vez, a nossa saída do paraíso, sem possibilidade de retorno. A racionalidade interrompe o mistério e castra o mito, definitivamente.
No segundo filme, o convite é feito a partir de um mergulho do homem para dentro de si mesmo. Logo de início, após a morte (depois da vida), as portas se abrem e as pessoas vão chegando. Há uma porta de entrada e lá fora há apenas neblina. Tudo é suave, e morrer não parece diferente de viver, apenas, é preciso que se escolha uma lembrança para seguir adiante. Seguir adiante, aí sim, é como um teste, como a chave que vai abrir outro portal. O modo como a pessoa se conduziu através do experimento da vida, terá repercussão na hora da escolha da lembrança: indecisões, dúvidas, temores e apreensões, são indicativas da situação que envolve cada um dos personagens, nos mais variados comportamentos.
Em qualquer parte do planeta, as mesmas questões que envolvem a vida do ser humano são colocadas, evidentes e paradoxais. Cada pessoa que morre é chamada a reviver todo o tempo vivido. E aí, novamente, somos confrontados através das personagens com nossas escolhas filosóficas, antropológicas, sociológicas e religiosas, que são reflexos dos caminhos trilhados, do tempo que gastamos com a existência. Estar consciente do processo, de existir, de escolher enquanto se está vivendo, faz a grande diferença, no instante em que se é chamado para significar a vida, em apenas uma lembrança.
Percebe-se a importância dos cinco sentidos, como fator preponderante na fruição dessa jornada. Eles funcionam como janelas do corpo, como antenas que nos ligam à alma. Extasiam-nos quando conseguimos partir das sensações corpóreas, como possibilidades da materialidade, para adentrar às experiências anímicas. Quando ampliamos a nossa consciência, para além do emocional, indo aos sentimentos mais profundos. A descrição dos mortos acerca das sensações através dos toques físicos, dos cheiros, dos gostos. Tudo isso vai crescendo no decorrer do filme e as cenas revelam que em qualquer parte a vida se faz e acontece muito mais pelos pequenos feitos que pelos feitos grandes e vistosos. A vitória e os louros estão para aqueles que ampliam seus sentidos. Para os que sentem a existência. Para os que cheiram e que olham e que abraçam e que vão se construindo dentro da condição humana e dos seus limites.
Mas a premissa principal, o ponto de partida para a escolha e o sentido de uma única lembrança que justifique a existência é o amor. E nesse aspecto, Hore-Eda é simplesmente fantástico, porque essa necessidade se apresenta sem ser nomeada. A gente é chamada a refletir sobre isso. A cada morto, o qual é solicitado que se escolha a sua lembrança, somos remetidos às nossas. O que eu escolheria para seguir em frente depois da vida? Do que eu me deixaria impregnar como bálsamo ou como troféu para seguir pelos mistérios? O que valeria para pontuar a minha existência em detrimento a todas as outras vivências que tive?
Novamente, num paralelo com Blade Runner, a mesma questão da memória aparece para os replicantes, só que através de recursos fotográficos falsos. A memória dentro desse expediente, serve apenas para forjar uma trajetória da vida que não aconteceu e que por isso mesmo, não representa a história de uma existência. No caso dos replicantes, é um passaporte para burlar a sua criação sem os processos evolutivos, sem os laços afetivos, sem a presença do divino. As lembranças tão buscadas por eles é uma tentativa de humanizar-se: Um objeto humano, criado à imagem e semelhança do próprio homem, tentando se sobrepor à sua condição de simples produto mercadológico, com prazo de vencimento.
Em Depois da Vida, a criatura, criada à imagem e semelhança do seu Criador se vê diante dessa situação, sendo exposta a uma realidade antagônica a outra, proposta em Blade Runner: a exigência de percorrer a memória para recontar a si mesmo, sua própria história, como dádiva dos mistérios de Deus. Ele precisa justificar a sua existência, num único instante de felicidade, como condição primordial para retornar ao paraíso.
Hore-Eda sugere que a vida, mais que um filme, é a metáfora onde a linguagem do cinema é por excelência, a lembrança em forma de imagens. É também a sala de projeções onde a memória do próprio tempo nos registra. Somos os atores da vida, podendo ser ou não, os protagonistas da arte de existir.
Cara Goretti,
ResponderExcluirLi o seu blog e já o adicionei entre os favoritos. Soube que você andou "arrasando" na apresentação do TCC. Parabéns! Vou lançar o adesivo: "ORGULHO DE SER JACIOBENSE".
Sobre o seu texto, gostaria de "pitacar" o seguinte: observe que a negação da racionalidade em Blade Runner é individualizada. O trabalho não aparece como centralidade. Mesmo quando é discutida a condição de escravos dos replicantes, o que vem em primeiro plano é a inadequada utilização da engenharia genética. A solução proposta é a fuga para outro lugar.
Observe que Deckard, que é um jovem policial aposentado e que se vê obrigado a voltar ao trabalho, quer fugir do seu passado de caçador de andróides, ao mesmo tempo em que vive as recordações familiares desse mesmo passado. Qual é a grande reivindicação de Roy e seu grupo rebelado? Alguma sociedade mais justa? Não. Ele cobra mais tempo de vida para não jogar fora o que “os seus olhos viram”. Rachel, por sua vez, quer ter um passado.
O filme se propõe discutir um ser pós-moderno, individualizado. As soluções? Também pós-modernas: a fuga para o indivíduo humanizado.
Abraços jaciobenses.
Edberto Ticianeli
Outro jaciobense esteve aqui. Um abraço!
ResponderExcluirFaz tanto tempo que assisti esse filme, recordei o aqui.
ResponderExcluirJefhcardoso do
http://jefhcardoso.blogspot.com
Diego Luna é um homem muito carismático e profissional, se entrega a cada um dos seus projetos. Em Além da Morte fez uma atuação maravilhosa, se vocês ainda não viram, perssonalmente considero um dos melhores melhores filmes hbo . O filme tem uma grande história e acho que o papel que ele interpreta caiu como uma luva, sem dúvida vou ver este filme novamente. É um filme que vale muito a pena ver. Espero seguir seus próximos projetos para ver a evolução do seu trabalho.
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