Quando chove


Sempre que chove, como chove agora, eu, que prefiro os dias ensolarados, mergulho na umidade das lembranças. Minha casa velha, as goteiras, as novas modalidades de enxergar a rua, os sapos saindo dos esgotos e outros, atrevidos, que entravam nos quartos, a queda da energia elétrica, velas e candeeiros. Exílio: amigos e brincadeiras se distanciavam na chuva. Eu ficava como se estivesse presa, por trás dos grossos pingos d'água, emoldurando imagens turvas, transeuntes, trafegantes, debaixo de sombrinhas. 

Inverno para mim significava uma forçada introversão. Ver a casa, ouvir seus sons, sentir seus cheiros... Distinguir coisas e representá-las distintas de si mesmas. Repetir-me, cotidiana, nos mesmos cenários, sem poder escapar às orações, em torno da mesa, à invocação da ladainha de N.Sra, com os seus títulos a me saírem pela boca.

Oh! Mãe de Misericórdia, Mãe da Divina Graça, puríssima, castíssima, Espelho de Justiça e Sede de Sabedoria, causa da nossa alegria...

Úmidas lembranças sob os lençóis frios da meninice, como um desejo chuvoso de acolher, agora, as águas que caem das nuvens, e entender, religiosamente, os signos que vêm com o cheiro que esse tempo exala. Desperto, como uma coisa inventada, grande e nenhuma. Como sendo sentimento extravasado que me retorna para uma chuva de guiar o meu desvio para dentro. 

Aproximada, voluntária, expansiva em me debulhar, como casa de telhado fendido, casa de portas e ferrolhos, com quintal e fachada, cozinha e quarto de dormir. Entrego-me, talvez tardia, ainda a conhecer-me e construir-me, pois, às chuvas. E me exilo, refém auspiciosa - a casa em mim, e me sendo -, para dentro dos meus próprios cheiros, da minha voz quase idosa, onde eu ecoo das lembranças do inverno, o arremesso por sobre o tempo.

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