Soledade tinha ido fazer uma faxina no quarto de dona Aurora e vexou-se em pouco tempo de serviço. Encontrou uma caixa de papelão com muito cacareco dentro. Frascos de loção secos, de Leite de Colônia, embalagens de plástico de Leite de Rosa, Charisma, carretéis de linha, mochilas de papel. Oh, mamãe, venha aqui, por favor. Dona Aurora que mexia um doce de leite na cozinha, deu descanso à colher de pau sobre um pires, e sem tirar o avental, caminhou com passos ligeirinhos e sem arrastar os pés até o quarto. A filha, impaciente, quis tirar satisfação sobre aquele troço todo, que à primeira vista, desnecessários, só servia para atrair baratas. Para que tanto lixo guardado, mamãe? Vamos jogar isto tudo fora. Dona Aurora, do alto de seus mais de setenta anos, encheu as ventas de fogo e correu os olhos dentro das órbitas. Mas... encheu-se de calma e sem alterar a voz, explicou coisa por coisa que ali havia juntado. Percebeu com a mesma calma, prêmio daquela paciência aprendida com os anos,
Atravessando essa chuva todinha e nem deixei palavra dentro do inverno. Pior para mim, que por desleixo, comprometo uma estação, sem dizer minhas coisas. Mas elas estão aqui, sentindo. E quando eu digo; coisa, eu quero dizer muita coisa. Nesta casa que goteja palavras soltas, sonhei outras. Por esses dias sonhei duas casas. Eu, numa sala imensa sem reboco, um canto desejoso de sofá e dois abajures. Sim, logo dois. A outra casa nem entrei. Na fachada, salitre, uma bagaceira. Esmurrei a parede, uma força... e abriu-se um buraco. Olhei por ele e pensei, ‘se continuar assim vai cair tudo’. Alertei o dono da casa. ‘Ô, Seu menino, se não cuidar, essa frente vai cair. Pode cair a casa toda, viu?’. Nesse tempo o silêncio me fala sobre inexatidões. Dos dias chuvosos saíram estopins de bombas e notícias, a maioria tão tristes. Cheiro de pólvora, não. Nem senti. Senti alguns medos, coração disparado, uma dorzinha aqui de um lado. Depois saudades, depois lágrimas, depois, amanheci com alegrias.
Deitada no sofá da sala, uma perna erguida sobre o encosto, Celeste vasculhava distraída o pedaço de céu recortado, bem acima da jardineira do muro. Quanto mais nuvem melhor, pensava. Brincava de ver anjos e bichos que desmanchando-se diante dos seus olhos, evaporavam manchando aquele azulzão celestial. Nela, um desejo ardente de ver coisas sobrenaturais e que de repente, pudesse ser aberto um portal para o Mistério. Mistério, com letra maiúscula mesmo. Algo inacreditável, impressionante. Só de pensar sentia um medo enorme de não aguentar ver o que, segundo a sua própria imaginação ousava pensar, pouquíssimos olhos humanos ou nenhum, talvez, tivessem visto, e morrer de repente. Pensamentos malucos que iam e vinham. A tarde seguiu vagarosa, mastigando os segundos, os minutos e as horas que declinaram na dormência do sol. Celeste seguiu pensando fragmentos. Do que havia feito pela manhã, do cochilo que acertou em cheio a sua distração e arrebatou-a para o esquecimento de si. Despoj
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