Sagrados, como o fogo de Prometeu




O lírio eucarístico veio da casa da minha infância, assim como vieram estórias que se tornaram história e que guardo até hoje. Minha avó materna tinha o dom, aquela coisa mágica, de não deixar nada morrer, de trazer o passado para o presente. Convivia-se com a maravilhosa presença dos que moravam distante, dos que haviam partido desta para outra melhor e daqueles, digamos, "bem antepassados". Todos eram alimentados por passagens contadas por ela, minuciosamente, onde antigos diálogos eram revividos – os que presenciara e outros, que sabia de ouvir dizer pela sua mãe -, sobre tipos físicos, as idiossincrasias, as opiniões de cada um, as atitudes e reações diante dos fatos da vida, suas maneiras e gestos. A recorrência neste caso é uma dádiva, quase e por vezes mesmo poética e fantasiosa, que torna heróis e heroínas nossos familiares. 
Traziam-nos, pois, no dia a dia e para estar conosco nas comemorações da Semana Santa, nas celebrações do mês Mariano, nas festividades da Igreja Matriz do Sagrado Coração de Jesus. Evocados, ocupavam seus lugares e comiam o peixe, o pirão, o feijão com coco, a galinha ao molho pardo aos domingos, o peru da ceia natalina, todos ali conosco e à nossa mesa. 

À esquerda, tia Maria Luísa, ao centro, minha avó, à direita,
tia Perolina. Na frente, minha mãe e sua prima-madrinha
Angelita
Meu avô, José Vieira Lima - Zé Babu, imagino-o de tanto ter ouvido falar nele, a andar pelos corredores da casa, usando chapéu panamá, com o seu costumeiro terno de linho branco, e posso presenciar o exato instante, em que se achando todo cheio de direitos, disse sem papas na língua à minha avó, enfezada, por ter tido notícias de haver chegado de navio em Pão de Açúcar, umas prostitutas vindas de Piranhas, 'Olhe Tina, é uma pena eu ser tão pobre, se eu fosse rico, teria uma rua de raparigas’. 
Uma de suas irmãs, minha tia-avó Perolina, posando séria na única foto que temos dela, veste uma roupa escura e sóbria, compondo um belo quadro com a outra irmã, tia Maria Luísa. Vê-se então, ladeando Mãe Tina, as suas cunhadas. À frente do grupo, ainda pequena, minha mãe e sua prima-madrinha Angelita. Seriedade. Nenhuma delas esboça qualquer sorriso.  Figuram, ilustrativas, à materialização desta lembrança apreendida aos olhos e ao coração. Tia Perolina que nunca a vi, conheço-a quase tão bem quanto qualquer um que tenha convivido com ela. Sei sobre suas duas filhas, o marido e que como sempre afirmava a minha avó, uma das minhas irmãs é parecida com ela. Alta e magra. Meus tios-avós, irmãos de Zé Babu, dois deles moravam no Rio de Janeiro, outro, no Recife. Quando os vi pela primeira vez, já os conhecia também.  Todos, filhos de Sinhá Maria Rosa e Seu Manezinho. Sobre ela dizia a minha avó, que trazia a chave da dispensa no cós das calças.

Dona Elpídia é sonâmbula e uma noite dessas saiu portas afora em direção ao rio. Acordou dentro da água. Tomou um susto daqueles. Depois disto vez por outra o juízo dela enfraquece. É minha bisavó. Firme na criação dos filhos. No dizer do povo do outro tempo, tem 'sangue no olho' e ninguém passa-lhe a perna. Não chama por um deles duas vezes sem ser prontamente atendida. Quando vai castigá-los prende suas cabeças entre as pernas e, tome palmadas na bunda.
Minha tia-avó Madrinha Laura e meu bisavô
José Serafim dos Santos
O capitão José Serafim dos Santos, cuja patente foi comprada, está sentado, e ao seu lado, em pé, outra tia-avó, madrinha Laura, tem postura grave. Creio que veste-se bem, de acordo com a época. Ele é o meu bisavô e ela, filha única do primeiro casamento do capitão, é meio-irmã da minha avó. Possuem casa comercial tendo apreciável sortimento de produtos, na avenida Bráulio Cavalcante, com esquina para a Travessa João Pessoa. O bacalhau é oferecido à venda pendurado pelo cabo de uma vassoura em uma das portas de entrada do estabelecimento. Balcões de madeira lisa, nas prateleiras sólidos e escuros blocos de torrões de açúcar, Água inglesa, Aguardente Alemã, vinho... Alfenins alvíssimos, maná, aquelas coisas  que desapareceram com a mudança dos tempos.

Olhando para o meu lírio eucarístico, cheio de flor, imagino que o primevo tenha chegado à minha família, há mais de um século. Sei muito bem de onde fui buscar tanta gente, e penso, ‘eu ia escrever outras coisas’. Tinha outras intenções. Dizer sobre como os lírios entraram em minha vida para nunca mais saírem, ia contar sobre Santa Maria Goretti a quem devo o meu nome. Seria boa prosa, envolvendo drama amoroso, promessa, o surgimento da fé para um ateu em desespero, o meu nascimento e ser chamada por um nome que nunca achei que combinasse comigo. Bastava-me o primeiro, Maria. E pronto. 
Eu  (1961)
Mas foi sem querer que desdobrei o tempo e assanhei grandes formigas cloróticas e seus muitos ovos escondidos. Cá estão aos montes, atordoadas, saídas de pequenos locais sombrios e úmidos. Aparecem dentro de antigos livros que não têm sido abertos por décadas e das coisas que se guardam e são esquecidas por muito tempo. As gavetas da velha cômoda encostada à parede do quarto também úmido, são propícias a esconderem surpreendentes existências. Da mesma forma como sou surpreendida com o pensamento de que eu seja uma das herdeiras destes acúmulos da história tecida em minha casa.


À morte do capitão, minha avó era mocinha. A casa anunciou-se enlutada, dispondo à fachada grandes estandartes de tecido preto, cobrindo suas portas e janelas. A família manteve-se reclusa durante uma semana. Quando enfim seus membros retornaram ao cotidiano convívio social, vestiam-se com luto fechado e carregavam pesares visivelmente sinceros. Como sei disso? Ouvindo a minha avó ressuscitando os tempos e as dores nele transcorridas.

"Estava Nossa Senhora sentada, com um livro de ouro nas mãos. Meio aberto, meio fechado. Meio lido, meio rezado..." 

O Sonho de Nossa Senhora, uma oração que ela me ensinou quando eu era menina e que deve tê-la aprendido com a sua mãe, que aprendeu com a mãe dela. Era cantinela diária. Ela dizia frase por frase e eu ia repetindo, impaciente. Então insistia, ‘escreva em um papel e me dê que eu decoro’. Não podia. Aquela era uma oração forte, especial, tinha que ser transmitida oralmente. “Quem ouvir e não aprender, no dia do juízo há de se arrepender. Quem souber e não ensinar, terá trabalhos consigo pelos séculos e séculos. Quem souber esta  oração e rezar um ano por devoção, três sábados antes de sua morte, Nossa Senhora virá lhe avisar”. Às últimas frases, compostas por duas sentenças e uma promessa, me mantinham presa àquela responsabilidade, como a uma maldição. 

Em outras palavras o enredo é o mesmo. É como dizer que se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. É estar-se em um beco sem saída. Em viela impositiva e nada democrática. Nenhuma misericórdia. É dever. Forçosamente um dever, o que sinto ter, após haver guardado à memória, o ouvir contar de tanta vida. Por isso torno-me, por obrigação, guardiã dos seus protagonistas. Dou-me a continuar a trazê-los à mesa das refeições da minha casa, andar de braços dados com eles pelas ruas, repeti-los, recuperá-los, ajeitar suas vestimentas, cuidar dos álbuns de família para poder apontá-los ‘ aqui é tio Bitote, tio Dimas, tia Maria Luísa, a prima Angelita, tia Palmira... Nonona... Minha avó... Não poderei descuidar deles, para que não partam e com eles se nos arranquem as raízes, o ponto de partida que nos reinicia e nos retorna à seiva de quem viemos e sobre quem somos. Para onde iremos?  Não sei dizer ao certo. Eis o grande mistério à nossa saga. Mas a verdade é que em nós, todos vivem e suas existências estão salvas.

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