Madrepérola para adornar saudades

Nossa Senhora do Rosário
O tecido do vestido para a minha Primeira Comunhão, o terço de pérolas, a vela e o livrinho de orações - o missal -, vieram do Rio de Janeiro. Minha mãe andava de um canto a outro dentro de casa fazendo anúncio, que ela nunca foi de fazer média fora dela ‘o livrinho tem a capa de madrepérola’. Foi a primeira vez que ouvi o nome “madrepérola”. Fiquei curiosa e encantada só de ver a satisfação dela, encher-se por convencida vaidade dizendo aquilo. Novidade. Eu adorava uma. E aquela que introduzia no meu vocabulário tal palavra, era como coisa do outro mundo. Aquilo era muito bem vindo. Era coisa fina. A palavra sempre me manteve junto a si.

Tia Palmyra
Tia Palmira comprou tudo por lá. Teria sido na Ilha do Governador? E enviou pelo Correio. Era um presente. Pacote registrado. Uma demora pra chegar. Naquele período que antecedeu o acontecimento, os assuntos iam e vinham e findavam alongados acompanhando-nos à costumeira prosa na calçada de casa e adentrando à hora do jantar. Comumente, comungava-se pela primeira vez, as meninas, vestidas como freiras. Eu, não. Vestiria um tubinho longo e à cabeça traria um chapéu diferente, à moda russa. Ideia de minha mãe que atreveu-se a fazer mais uma inovação, atirando, com se diz, com a minha pólvora. 

Tinha feito valer ela mesma, outra ideia audaciosa, estreando calça comprida naquela cidadezinha. Eu gostava de vê-la contar, pioneira e empolgada ‘a calça eu comprei no Recife quando fui visitar tio Dimas’. Os preparativos, a costura da roupa e outros detalhes, mobilizaram-na e a minha avó,  dando-se as duas a um intenso planejamento. Jesus eucarístico, estou certa até hoje, fez vistas grossas a tanta pompa e ostentação e tendo considerado o desejo delas de agradá-lo e a mim, inocente e sem a menor vaidade, semeou-me o coração, enquanto eu o recebia com a mesma leveza do pensar, no quão saboroso deveria estar meu lindo bolo confeitado, decorado com cálice, hóstia e uvas. Pensei nele e no meu chá, que tomei-o na mamadeira, ainda vestida no que chamo de traje asiático, escondida no quarto da minha conivente avó.  Eu estava com sete anos e  debaixo do lençol, depois do rito da comunhão, temia ser descoberta. Aquela era a minha absurda fraqueza, que minha mãe condenava como um horroroso vício.

Dia da minha Primeira Comunhão
Ademais, se me perguntam, direi que esta é uma lembrança que veio pelos ares como a explosão das leves sementes de craibeira, que após a floração, enchem o chão dos arredores de onde estão. Janeiro, fevereiro, não sei exatamente quando acontece. Essas coisas vêem assim. Não avisam. Esvoaçam, debruçando pequenos e grandes lampejos, sobre as estações que passaram por dentro da gente. Agora, sejam talvez outonais, os nossos esquecimentos. Ontem mesmo contei à minha irmã sobre a péssima viagem que fiz e que com certa angústia, vi esmorecerem severamente, todas as minhas pretensas fundamentações “marco-aurelianas”, lidas com sincero desejo de adotar o estoicismo como filosofia de vida. Estou muito longe ainda disto tudo e consinto em admitir com certa desilusão, que também esqueço deste intento. Fogem-me da lembrança os propósitos. Uma cabeça só para tanto o que pensar.

Minha mãe
Mas o que fica a salvar-me é uma nesga de esperança, diante do fato de que demonstrei uma paciência, ainda que pífia, que não sabia que tinha. Já em casa mais tarde, prostrei-me acometida de um cansaço e uma sonolência anestesiantes. Paciência é virtude exigente. Quase me destroça antes de me conceder uma amostra da graça da devida serenidade. Mas qual virtude não o é? Ainda que fraquinha, a principiantes da minha marca, tem certos tributos a serem cobrados. Paguei os meus. Ainda na terça-feira eu tinha ido almoçar no centro da cidade e uma discreta solidão, pareceu prolongar-me por horas lentas, com passos despropositados sobre o chão das ruas. Sinto saudade, uma falta louca de Magnólia e de Chico, que por lá já não andam. De passagem pela Igreja do Livramento, um cheiro de jasmim existente somente, na afetiva e memorável fragrância de um olfato impregnado de simbolismos sacros, ativa-me a achar que todas as igrejas são réplicas da Matriz do Sagrado Coração de Jesus da minha Cidade Branca e que todas elas cheiram a jasmim.

Pois que não há outro caminho senão atribuir-me um extraordinário desejo de Deus em mim, que acerta-me a alma como um dardo de fogo e alivia-me do medo de ser pessoa. Sento-me em um dos bancos e espero. Instintivo, ligeiro, o mistério explode em ardores todos os meus sentidos. Retiro-me do mundo e aprofundo-me no abandono amoroso  do nada-ser e os silêncios do Altíssimo ressoam dentro dos meus internos louvores. Em seus pedestais, uma a uma, todas as imagens dos altares me sorriem. 







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