Amor declarado

Ester foi desta para uma melhor. Morreu como o hamster de Negão; silenciosamente, num cantinho da gaiola. Só demos fé quando as formigas começaram a rodeá-lo. Deitadinha virada pra parede deu um suspiro agoniado curto e rouco, e quando a gente foi acudi-la, ela já tinha ido embora. 

Dois dias antes, eu tinha chamado o padre Inácio lá, que levou os santos óleos para benzê-la. Foi dar a Unção dos Enfermos a ela. Aquele óleo roxo eu fui ver pra que servia: era pra fortalecê-la na provação da doença e dar força pra ela enfrentar a dor e a morte, que a gente notava, àquela hora, ser da vontade de Deus. ‘Reze comigo dona Ester’ dizia o padre. O que? Ela respondia. É pra rezar o quê?

Todo mundo que estava no quarto riu. O dia da morte se aproximando e ela fazendo graça. Não estranhava morrer não. Nunca estranhou.  Lembro quando o meu primo Maneco bateu as botas. Ela não derramou uma lágrima sequer, que não tinha precisão disso não, minha gente. “Só chorei quando a minha mãe morreu e pronto. Tem precisão disso não”, e avisou à Anita, a mulher dele: “Veja lá mulher, arrume o Maneco bem direitinho, que é pra ele não chegar no céu desarrumado”. 

Olhando pra ele dentro do caixão no meio da sala, todo aprumado, dava até vontade de rir mesmo. Ia bonito sim. Maneco ia que ia, uma beleza, para a derradeira viagem. Odeto, e não sei como se coloca um nome desses num homem, o seu marido, quando morreu, na hora do féretro sair de casa, Ester disse alto pra quem quisesse ouvir: “Vá simbora hôme que eu não quero me encontrar com você tão cedo!” 

Na hora do jantar pensei nas coisas dela. Nas suas gavetas que seriam reviradas pelos familiares, naquelas panelas velhas cheias de remendos feitos com durepox, na gravura do Sagrado Coração de Jesus pendurado logo na primeira sala, numa parede de frente pra porta da rua. Pra onde iria aquilo tudo? Aí voltou a preocupação que eu tenho de morrer sem estar esperando, assim de surpresa, e deixar meus escritos, minhas calcinhas com os elásticos sem validade, umas coisas precisando de conserto, meus perfumes novinhos, ainda na caixa. ‘Olhe João, se eu morrer primeiro do que você, entregue a minha câmera fotográfica pro Negão, que é dele’. João me desacredita me olha de través e diz, enfezado a depender da hora, que jogo muita conversa fora: ‘Mulher, não gaste pensamento com besteira, não. Vá pensar em coisa real pra fazer’. Ora, e morrer não é real, não? Outro dia quis explicar um pensamento meu, sobre que talvez a gente fosse as personagens de um sonhador universal, cósmico, será?. Será que somos parte de um sonho? E ele me repreendeu com um: ‘por favor, não estou a fim de ouvir devaneios essa hora, me desculpe’.

Quero dizer a João que cheguei à conclusão de que Ester, como quase ninguém faz ou entende, sabia que não se pode separar a vida da morte. Que as duas andam de braços dados. Que é preciso estar vivo para depois morrer. Era sabida até demais, Ester. A confirmação de certos pensamentos meus, aparecem quando menos espero. Chegam assim, assim. Tento puxar conversa com ele. Entabulo uma, aliciente, começando pela chuvarada boa que cai. ‘Estará chovendo em Lagoa Grande, hein, rapaz? A comida ta boa? Quer mais suco?’ Fico rodeando ele pelas beiradas, até chegar ao miolo: ‘O que será que os familiares encontram nos pertences de quem morre? Alguns segredos? ‘Você que acha da ideia, de que viver e morrer, são opostos que se alternam sem parar? ‘Eu não acho é nada. E pronto’. Coitado! João tem um medo danado de morrer.

Hoje de manhãzinha, chuvinha fina caindo, eu preparando o café, ele chegou à cozinha anunciando: ‘às cinco da tarde vamos acompanhar um enterro’. É que a tia Maria descansou e Audálio ligou pra ele avisando. Na ida fui contando o tanto de gente que já morreu. Umas cem caminhadas a cemitérios, nesses anos todos. Será? É coisa pra se anotar num caderninho, senão a gente perde a conta. Só nesse ano já foram umas seis vezes. Na volta pra casa, João foi tomado de uma clareza de consciência tamanha, que me assustou. Até aceitou que vai morrer um dia e me disse pesaroso: ‘sabe mulher, eu queria deixar tudo certinho antes de morrer, porque se eu for primeiro, você fica sem humilhação de nada, sem se apertar por dinheiro, essas coisas... ’ Parece até meio amoral da minha parte, mas me peguei fazendo uma porção de planos para o caso de eu ficar viúva: vender o carro velho, jogar aquele guarda-roupa aos pedaços no lixo, comprar outro novinho, colocar chuveiro elétrico nos banheiros, mandar fazer móveis pra cozinha... 

Olhei pra João que naquele instante, aos meus olhos assumiu sem saber, um jeitão de herói. Comparando bem, um santo, com auréola na cabeça e tudo. Ele ficou desse tamanhão. Um mundo de dignidade. Um homenzarrão. Me senti grata. Uma espécie de admiração por ele me tomou todinha. E se eu disser que chega me arrepiei? Aquilo saindo da boca dele, numa hora daquela, soou como declaração de amor e me deu uma certeza egoísta medonha. Sabe que lá bem dentro de mim eu fiquei foi feliz? ‘E não é que esse homem me quer bem mesmo?!’

Comentários

  1. ‘Mulher, não gaste pensamento com besteira, não. Vá pensar em coisa real pra fazer’. - Não vou mentir, também me pego queimando pestana com essas coisas de depois, de amanhãs... Fico reclamona quando não tenho ninguém pra "costurar" meus pensamentos. Dá um nó na cabeça... Certas vezes só um João mesmo pra dizer a coisa certa, quando a gente menos espera, e desatar os pensamentos...

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  2. Goretti querida, você é notável, de sensibilidade ímpar.
    Fiquei confusa com seu gênero narrativo, entre um conto ou uma crônica, ou será que fez uma "Unção"...
    Simplesmente adorei sua mensagem!!!
    Beijos.
    Solange.

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