Sem Assunto

 

Deitada no sofá da sala, uma perna erguida sobre o encosto, Celeste vasculhava distraída o pedaço de céu recortado, bem acima da jardineira do muro. Quanto mais nuvem melhor, pensava. Brincava de ver anjos e bichos que desmanchando-se diante dos seus olhos, evaporavam manchando aquele azulzão celestial. Nela, um desejo ardente de ver coisas sobrenaturais e que de repente, pudesse ser aberto um portal para o Mistério. Mistério, com letra maiúscula mesmo. Algo inacreditável, impressionante. Só de pensar sentia um medo enorme de não aguentar ver o que, segundo a sua própria imaginação ousava pensar, pouquíssimos olhos humanos ou nenhum, talvez, tivessem visto, e morrer de repente.

Pensamentos malucos que iam e vinham.

A tarde seguiu vagarosa, mastigando os segundos, os minutos e as horas que declinaram na dormência do sol. Celeste seguiu pensando fragmentos. Do que havia feito pela manhã, do cochilo que acertou em cheio a sua distração e arrebatou-a para o esquecimento de si. Despojada de preocupações e tanta pergunta e tanta inquietação que vinha à cabeça, pensou quando acordou: dormir descansa a gente. Tinha ouvido dias atrás essa mesma frase ser dita por Adilson. Tão óbvio isso. Nem lembrava mais em que circunstâncias. Talvez porque o coitado não tivesse encontrado coisa melhor pra dizer.

Adilson é assim, usa das palavras não tanto por ter o que comunicar, trocar uma ideia ou outra. Ele fala para segurar conversa e prender a gente perto dele. “Pois é, Celeste... na razão de...”  e daí o que vem é conversa mole. Outro dia, enquanto ele estava nesse chove-e-não-molha, ela lembrou da mãe, e a saudade, como uma cobra verdinha, subiu pela buganvília e ficou lá de cima só espreitando, esperando ver o que seria dela. Que loucura aquilo, aquela lembrança fora de lugar e de propósito. Quer dizer, propósito, tinha.

Foi um cheiro que saiu do quintal. Um aroma de coisa esquecida na gaveta da cômoda da casa dela, que escapuliu bem na hora que Adilson disse, “na razão da pessoa ficar sozinha”, só para complementar um assunto remoído e sem pé nem cabeça, que ele mesmo não sabia como terminar. Mas essa coisa do ficar sozinha trouxe à lembrança, além da sua mãe, de tudo o que fazia a sua ausência ser a causa de haver-se instalado a partir dali, um mundo sem muito nexo, apagado. Era o pé de café na casa vizinha, todos os vizinhos que lá não mais estão. Era a algazarra dos meninos na rua, o redemoinho, a esperança, era a saudade de suas roupas, era uma dor de todas as faltas.

E como são misteriosas a dor e a ausência. Dissipam-se e retornam, e têm jeitinho de anjo, de bicho, de cobra verdinha sendo arrastada por um céu cheio de nuvens. Não há mais nada a dizer. Estou sem assunto mesmo, confesso. E depois, as palavras que seriam usadas para descreverem certos sentires, ainda não foram inventadas. Ainda não.

 

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