Carnaval e fantasia: máscaras que desmascaram
As ruas do centro de Santana do Ipanema estão todas enfeitadas. As
tradicionais marchinhas carnavalescas ecoam pelos locais por onde passam
os transeuntes. Nos próximos quatro dias, a gente que gosta, aproveita
para ser outra. A personalidade dionisíaca, sufocada durante os outros
362 dias do ano por condutas exigidas pelas convenções sociais,
finalmente afloram.
Tomados pela alegria, feito uma loucura contagiante, a maioria, nos
tornamos sacerdotes bacantes, introduzidos no cortejo de deuses alegres e
despreocupados, égides do berço da civilização ocidental. É assim que,
sempre que penso no espírito que norteia a multidão de foliões, me vêm à
cabeça as festas regadas a vinho, sob os desígnios do deus
errante, cujo séquito era composto de figuras dotadas de inúmeros dons.
É como se Dionísio nos visitasse, pobres mortais, nos guiando por
caminhos libertários e nos livrando, ainda que por tão poucos dias, do
peso da nossa própria condição de habitantes, de um mundo cada vez mais
racional, prosaico e que torna quase impossível, uma brecha por onde
possamos estender as possibilidades de experimentação da personalidade
humana.
Os deuses do ocidente são como indícios dos padrões comportamentais,
que de alguma maneira, fazem com que orbitemos atraídos à sua ação
gravitacional. Sob as suas influências, podemos vestir partes de nós
mesmos, que residem mergulhadas no mais profundo do que somos.
Paradoxalmente, acredito que em muitas situações, é quando se veste a
fantasia e as máscaras são colocadas, que estamos ritualizando - através
de atitudes opostas -, o despir das verdadeiras e perigosas máscaras.
São essas que de tão grudadas em nós, fazem com que nos esqueçamos de
ser algo para além do que somos exigidos de representar. E como
representamos... Seria de certo modo sábio, procurar o significado da
folia, indo adiante da própria folia. Ler nas entrelinhas, nos aproxima
de sentidos que têm sido frequentemente apagados e distanciados de nós,
em função da agressão sofrida pelo simbolismo coletivo, como sentimento,
diminuído a ponto de observarmos as coisas, partindo da nossa própria
pessoa e através dos signos que conseguimos ler, individualmente.
Não tão distante do presente, podia-se ver que grande parte dos
fantasiados utilizava suas performances para falar mensagens. Essas
pessoas desafiavam mistérios, propunham o exercício do pensar filosófico
e instigavam os membros da sua comunidade – no caso dos carnavais da
minha infância em Pão de Açúcar -, ultrapassando a realidade dogmática
da morte, realizando o irrealizável, como ser transportado em uma urna
funerária pelos amigos, indo visitar a casa de outros, ou sendo senhores
idosos se vestiam de bebês. Tudo suscitava contradição, reflexão e senso crítico. Lembro dos nomes e dos rostos de foliões,
que ficarão para sempre em minha memória.
Roberto Alvim, Eraldo Lacet Cruz, Seu Aquino, Augustinho, conhecido
homossexual, que se fantasiava de mulher e atraía a raiva dos
representantes do falso moralismo e o da polícia, que condensava e
exprimia o preconceito social, o perseguindo e prendendo. Era,
possivelmente, a única pessoa do sexo masculino vestido de mulher,
‘castigado’ nos Carnavais. Quem sabe, causasse desconforto nos senhores
‘homens de verdade’. Talvez, a genuína felicidade, como depositária e
cerne do espírito carnavalesco, e a pertença antropológica da folia de
Momo, estejam perdendo o sentido.
A fantasia, como expressão de modismo, pode até sugerir certa animação, mas, é a capacidade de liberação e o experimento de cada um em seus próprios personagens, que pode nos livrar das máscaras que estão grudadas em nossa pele. “Cair na folia” é muito mais do que deixar-se cair nos braços de extremados e irresponsáveis prazeres. Seja sentido, na força desta palavra, para quem experimenta o abraçar da alegria de poder vestir a fantasia anímica, possível de nos revelar, e não poucas vezes, nos redimir.
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