A senhora sabia, mãe?
Cheia de prato, a pia.
Seu Orlando, aqui do lado, trocou o madeiramento do telhado todinho. Isso é astúcia de cupim, comendo na casa dele e na minha. Comendo a madeira da rua toda. Canso só de olhar esse monte de prato sujo. Por onde começo? Pelos talheres, não. Odeio passar a esponja ensaboada pelos garfos e colherinhas. Odeio repetir tarefa de todo dia. Sinto falta de alguém chegar pra mim e dizer: "Que belo trabalho, Violeta!". Não há quem o diga. Tarefeira é o que eu sou, essa palavra existindo ou não no dicionário. Custa-me aceitar que todo o santo dia, fico aqui, lavando pratos. Ofélia me disse que um dia desses estava nesse ofício, e ouviu uma voz dizendo bem baixinho no ouvido dela: "Lavando prato sempre..." Teria a ver com a nossa sina de mulher? Ela me perguntou. Não. Achei que foi coisa de voz de desdenho, eu disse. Mas, se tivesse sido comigo o que eu teria feito? Pernas, pra que te quero? Seria uma carreira só. Uma vez, Alvinho chegou lá na casa da nossa mãe, e me ouviu filosofando sobre dons, em uma conversa velada, de fundo de cozinha. Éramos eu e minha irmã Celinha, assustadas, as duas, e eu me fazendo de corajosa sem ser, ia dizendo, inspirada, tanta palavra de confiança pra ela, que só Deus sabe. Pra ela e pra mim também, numa espécie de racionalização, que nos convencesse que tudo é obra dos ditos cujos mistérios que nos cercam, e que a gente nunca deve ter medo.
Seu Orlando, aqui do lado, trocou o madeiramento do telhado todinho. Isso é astúcia de cupim, comendo na casa dele e na minha. Comendo a madeira da rua toda. Canso só de olhar esse monte de prato sujo. Por onde começo? Pelos talheres, não. Odeio passar a esponja ensaboada pelos garfos e colherinhas. Odeio repetir tarefa de todo dia. Sinto falta de alguém chegar pra mim e dizer: "Que belo trabalho, Violeta!". Não há quem o diga. Tarefeira é o que eu sou, essa palavra existindo ou não no dicionário. Custa-me aceitar que todo o santo dia, fico aqui, lavando pratos. Ofélia me disse que um dia desses estava nesse ofício, e ouviu uma voz dizendo bem baixinho no ouvido dela: "Lavando prato sempre..." Teria a ver com a nossa sina de mulher? Ela me perguntou. Não. Achei que foi coisa de voz de desdenho, eu disse. Mas, se tivesse sido comigo o que eu teria feito? Pernas, pra que te quero? Seria uma carreira só. Uma vez, Alvinho chegou lá na casa da nossa mãe, e me ouviu filosofando sobre dons, em uma conversa velada, de fundo de cozinha. Éramos eu e minha irmã Celinha, assustadas, as duas, e eu me fazendo de corajosa sem ser, ia dizendo, inspirada, tanta palavra de confiança pra ela, que só Deus sabe. Pra ela e pra mim também, numa espécie de racionalização, que nos convencesse que tudo é obra dos ditos cujos mistérios que nos cercam, e que a gente nunca deve ter medo.
"Eu pensava que o nome dele era Elton 'Magalhões'. Mas né não. O nome é Magalhães. A senhora sabia, mãe?" A mãe nem aí, ocupada, nem respondeu. Se eu tivesse uma escada, parava de lavar meus pratos, a encostaria na parede do muro e ia olhar a cara da menina. Menina não, que a voz já era de uma mocinha de uns 14 anos. Foi o carro da campanha do candidato que passou pela rua fazendo zoada. O nome dele e o seu retrato estão espalhados por todas as bibocas da cidade, e a menina nem assim, se deu ao trabalho de ler a palavra? Pelo vidro da janela, olhei Adilson catando as folhas das minha buganvílias, sobre a grama do jardim. O que a gente faz em um minuto, ele faz em dez, "dona Violeta, a senhora não se aperreie não, que eu faço devagar, porque gosto de fazer bem feito", e é isso que eu digo a Aprígio, sempre atrasado, querendo projetar seus atropelos, na lentidão que desliza as movimentações de Adilson no tempo.
Celinha tinha tido uma premonição. Um sonho que mostrara pra ela, um acontecimento igualzinho como ia acontecer, e que findou acontecendo dias depois. Ela tinha um medo tão grande antever as coisas, e eu queria convencê-la de que ela era privilegiada. Mais do que eu, que nunca tive uma premonição sequer. Só certezas. Lavar prato todo dia, tem nem graça. Cozinhar, tomar banho, trocar de roupa, tem nem graça. Rotina de cupim dando fim à madeira, rotina de expectador acompanhando novela, mesmice de cantarolar as mesmas músicas conforme seja a mágoa e evocar mágoas cantarolando as mesmas músicas. E a gente gastando o tempo de viver só pra repetir as mesmas coisas. Que chateação.
Isso é um dom, Celinha. Um dom precioso. Pode crer. Falei até no santíssimo Espírito de Deus, revelador, cheio da Ciência Divina. Alvinho desfez meu discurso me fazendo um susto. Achegou-se por trás de mim e sussurrou ao meu ouvido com voz cavernosa: Violeeeeeta. Olhei em volta, será que Celinha tinha ouvido o que eu ouvi? Será que eu também teria a permissão especial de quebrar a inalterabilidade do previsível no cotidiano? Gritei, insubordinada, um sonoro Nãaaaao. Celinha não conteve a gargalhada e eu me senti indecente e envergonhada. Pra que tanto palavrório, se um dom daqueles, eu tinha acabado de demonstrar, não queria pra mim?! Isso de sonho que vai contando as coisas antes delas acontecerem eu não quero. Gosto é de sonhar coisas confusas, enigmáticas, daquelas que a gente passa pra mais de três, quatro dias pensando nelas, maturando as ideias, juntando as partes.
Eu nunca imaginei que a menina fosse atingir minha lavação de pratos - ela, mais para inocente do que para ignorante -, falando em voz alta, a palavra 'Magalhões'. A possibilidade da existência de um sobrenome desses, jamais havia passado pela minha cabeça. Não encontrei nenhum 'magalhões' no google, onde a gente encontra de tudo, né? Que nada?!. Eu também não imaginei que fosse encontrar um sertanejo alagoano daqueles bem rudes, logo de manhã cedinho, bem no meio da feira, acocorado, recitando sabedoria, 'que não tem coisa melhor do que uma mulé bonita, mas, mais bonita do que uma mulé bonita pra mim, é a minha família'
_ E então?. Perguntou a mim uma mulher que ia passando: É isso mesmo, né dona?
Nenhum anúncio nem antecipação de que aquilo ocorreria. Nada. Sou tocada pelo imprevisto que me traga para os diálogos com a vida. Depois eu pensei, que eu não tinha nada que dar uma de entendida de dons, pra aliviar a angústia de Celinha. Falar coisas sem convicção nem propriedade, só pra dizer coisa bonita é a maior idiotice. Dom maior, humano, é viver a certeza dessas rotinas, para depois a gente poder vê-las perfuradas pela imprevisibilidade, que quanto mais alheia, melhor. Eu gosto demais de encher minhas rotinas com gente. Eu gosto.
Eu nunca imaginei que a menina fosse atingir minha lavação de pratos - ela, mais para inocente do que para ignorante -, falando em voz alta, a palavra 'Magalhões'. A possibilidade da existência de um sobrenome desses, jamais havia passado pela minha cabeça. Não encontrei nenhum 'magalhões' no google, onde a gente encontra de tudo, né? Que nada?!. Eu também não imaginei que fosse encontrar um sertanejo alagoano daqueles bem rudes, logo de manhã cedinho, bem no meio da feira, acocorado, recitando sabedoria, 'que não tem coisa melhor do que uma mulé bonita, mas, mais bonita do que uma mulé bonita pra mim, é a minha família'
_ E então?. Perguntou a mim uma mulher que ia passando: É isso mesmo, né dona?
Nenhum anúncio nem antecipação de que aquilo ocorreria. Nada. Sou tocada pelo imprevisto que me traga para os diálogos com a vida. Depois eu pensei, que eu não tinha nada que dar uma de entendida de dons, pra aliviar a angústia de Celinha. Falar coisas sem convicção nem propriedade, só pra dizer coisa bonita é a maior idiotice. Dom maior, humano, é viver a certeza dessas rotinas, para depois a gente poder vê-las perfuradas pela imprevisibilidade, que quanto mais alheia, melhor. Eu gosto demais de encher minhas rotinas com gente. Eu gosto.
=D lindo!
ResponderExcluirObrigada, Babi!!!! Beijão
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