À ordem daquele dia
Saiu apressada do trabalho. Em pouco tempo estava na Rua do Sol. Adiantou -se até a Igreja do Rosário dos Pretos e entrando na travessa perpendicular a ela, caminhou apressada até o ponto de ônibus. Aquele dia seria o último a encerrar mais um ciclo de vida. Pensava nisso, quando de si mesma uma voz interior alertou-a para a urgência de medir a vida como um trajeto de avante à ré. Um absurdo quando somava as imagens do já vivido à profusão do tempo, meio que destoante do espaço onde tudo acontecera em sua vida até então. Como coubera ao tempo tanta ilusão e como o tempo tinha espaço para fazer tanto estrago na sua aparência? Estava ali, uma mulher, envelhecendo.
Era como se os dois juntos fragmentassem, cada qual a seu modo, a sua história, cortando-a como a uma longa fita cinematográfica, para posterior montagem, em uma edição meio maluca. Tinha vez que se sentia atriz dirigindo a si própria, uma performance de dar gosto, e à maioria das vezes absolutamente entregue às surpresas, às falas esquecidas, ao improviso, que quando tinha sorte, a livrava de travar-se como uma roda enferrujada, e que em outras ocasiões, contrariamente, pois que sem a graça da devida criatividade, ia à bancarrota atropelando-se na apresentação. Viver é estar, dizia de si para si - além de contracenando com outros -, e ter por obrigação, de ver-se diante do espelho, por dentro e por fora, honestamente, e ao mesmo tempo, encarando plateias. Há quem consiga tal façanha? Para depois e no final de tudo, torcer para ganhar uma coroa de louros, bem ao estilo romano, tendo por trás de si na hora do júbilo, alguém a lembrá-lo ‘ você é humano’. Não dar a vez à soberba é glória para poucos.
Lembrou da empáfia de um jovem senhor, dia desses, que a acusou, por sentir seus calos pisados, de viver filosofando, como se filosofia não fosse coisa boa. Defendeu-se. ‘Como o senhor, um professor, quer me esvaziar o discurso, só porque eu questiono as coisas?’. Não confunda filosofia com autoajuda. Não me tome com quem vive repercutindo ideias preestabelecidas, nem métodos, aqueles, que começam sempre, com ‘Dez maneiras para resolver isso e aquilo’. Para lá com essas coisinhas, por obséquio. Eu preciso tirar a roupa das coisas, descascá-las até o miolo e por mim mesma. Tenho que avaliar se têm valor ou não. Sou eu quem diz se isso é bom, se isso não é. Queira o senhor me fazer o favor de não se referir à minha 'filosofia', como se fosse devaneio utópico.
À viagem com destino ao Benedito Bentes em uma lotação, anunciou-a um homem. Chegou às pressas e sem rodeios antecipava a informação ‘é dez reais’. É dez reais’. Motoristas de ônibus em greve e o preço da passagem ficar superfaturado é certo, como em cozinha de casa na roça, ter um sapo velho, sonolento e gordo encostado ao pé do pote d'água. 'Mas Seu Zé, e esse carro tem alguma coisa de especial? Ontem, eu paguei sete reais’. ‘Ontem. A senhora disse bem. Hoje tenho amigos cobrando até quinze’.
Ficamos nós à mercê dos donos das lotações. Era isso mesmo, dez reais. Vai ou não vai? E tenho outro jeito?Sem acordo e já dentro do automóvel, permitiu-se ser conduzida por um afeto recente. Coisas que o coração pede audiência, depois de haver-se inaugurado nessa coisa que se avoluma, em um ruidoso segredo. Que confusão. É um bater descompassado, exigindo que se lhe dê espaço para expandir-se. Sente precisão de estender esse desconforto até as extremidades desconhecidas da alma, alfinetando-a, e esticá-lo a tal ponto, que deixando marcas na sua aura, ela o interprete e reconheça. Meu Deus, que pode a gente fazer com um coração ousado, feito este que trago?
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