- Tinha vindo de um lugar qualquer, como quando em sonho, se aparece no cenário sem preâmbulo algum. Inaugurava-se, pois, não obstante ter-se pensado neutra, vazia de palavras, estando com os pensamentos desarrumados e turvos. Ali estava e haveria de dar sinal de presença. Bocejou, voltou-se calmamente para o lado esquerdo da sala, viu as fotos antigas na parede, cuja tinta pedia pintura nova. Duas ou três demãos. Fora disto havia a amostra do sol escaldante e o seu recorte feito pelo enquadramento da janela, a sombra da copa da árvore no chão de terra dura, o calor abafado e a sisudez de um campo exausto e sem flores. Seu olhar luziu, reluziu e estrelou-se pitagórico sobre às três da tarde. Àquela hora Mariana deveria estar na cozinha brincando com meia dúzia de bonecas. Kátia Lilian retornou inteirinha, com o seu cheiro à lembrança do vestido de cassa cor-de-rosa, sapatinhos brancos de plástico e o camiseiro com cortina nas portas. E ela ali, tão ricamente vestida e tão pobre das mãos infantis sobre ela, estática por trás da vitrine, esperando as praças da avenida principal. Figurante domingueira. Um acessório para a sua dona. Era boneca para passeio. Uma tristeza, uma boneca passar a vida inteirinha sem brincar.
- É por falar em presença, que as várias ausências precipitam-se. Tão verdadeiras que têm peso e formato. E cheiram, talvez a alfazema daquele frasco, em cuja embalagem uma camponesa apresenta-se colhendo-as, distante e, sob um tempo indeterminado. Esses campos por aqui são outros. São também extensos, mas, empoeirados. São de um amarelo-ocre permanente. Têm chãos dourados, árvores com galhos desfolhados, hirsutos e prateados. É como em um sonho, onde está-se sem saber como se chegou. Que fim levou a boneca que nunca brinquei?
Com quase sessenta
Soledade tinha ido fazer uma faxina no quarto de dona Aurora e vexou-se em pouco tempo de serviço. Encontrou uma caixa de papelão com muito cacareco dentro. Frascos de loção secos, de Leite de Colônia, embalagens de plástico de Leite de Rosa, Charisma, carretéis de linha, mochilas de papel. Oh, mamãe, venha aqui, por favor. Dona Aurora que mexia um doce de leite na cozinha, deu descanso à colher de pau sobre um pires, e sem tirar o avental, caminhou com passos ligeirinhos e sem arrastar os pés até o quarto. A filha, impaciente, quis tirar satisfação sobre aquele troço todo, que à primeira vista, desnecessários, só servia para atrair baratas. Para que tanto lixo guardado, mamãe? Vamos jogar isto tudo fora. Dona Aurora, do alto de seus mais de setenta anos, encheu as ventas de fogo e correu os olhos dentro das órbitas. Mas... encheu-se de calma e sem alterar a voz, explicou coisa por coisa que ali havia juntado. Percebeu com a mesma calma, prêmio daquela paciência aprendida com os anos,
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