- Tinha vindo de um lugar qualquer, como quando em sonho, se aparece no cenário sem preâmbulo algum. Inaugurava-se, pois, não obstante ter-se pensado neutra, vazia de palavras, estando com os pensamentos desarrumados e turvos. Ali estava e haveria de dar sinal de presença. Bocejou, voltou-se calmamente para o lado esquerdo da sala, viu as fotos antigas na parede, cuja tinta pedia pintura nova. Duas ou três demãos. Fora disto havia a amostra do sol escaldante e o seu recorte feito pelo enquadramento da janela, a sombra da copa da árvore no chão de terra dura, o calor abafado e a sisudez de um campo exausto e sem flores. Seu olhar luziu, reluziu e estrelou-se pitagórico sobre às três da tarde. Àquela hora Mariana deveria estar na cozinha brincando com meia dúzia de bonecas. Kátia Lilian retornou inteirinha, com o seu cheiro à lembrança do vestido de cassa cor-de-rosa, sapatinhos brancos de plástico e o camiseiro com cortina nas portas. E ela ali, tão ricamente vestida e tão pobre das mãos infantis sobre ela, estática por trás da vitrine, esperando as praças da avenida principal. Figurante domingueira. Um acessório para a sua dona. Era boneca para passeio. Uma tristeza, uma boneca passar a vida inteirinha sem brincar.
- É por falar em presença, que as várias ausências precipitam-se. Tão verdadeiras que têm peso e formato. E cheiram, talvez a alfazema daquele frasco, em cuja embalagem uma camponesa apresenta-se colhendo-as, distante e, sob um tempo indeterminado. Esses campos por aqui são outros. São também extensos, mas, empoeirados. São de um amarelo-ocre permanente. Têm chãos dourados, árvores com galhos desfolhados, hirsutos e prateados. É como em um sonho, onde está-se sem saber como se chegou. Que fim levou a boneca que nunca brinquei?
Rabeando
Atravessando essa chuva todinha e nem deixei palavra dentro do inverno. Pior para mim, que por desleixo, comprometo uma estação, sem dizer minhas coisas. Mas elas estão aqui, sentindo. E quando eu digo; coisa, eu quero dizer muita coisa. Nesta casa que goteja palavras soltas, sonhei outras. Por esses dias sonhei duas casas. Eu, numa sala imensa sem reboco, um canto desejoso de sofá e dois abajures. Sim, logo dois. A outra casa nem entrei. Na fachada, salitre, uma bagaceira. Esmurrei a parede, uma força... e abriu-se um buraco. Olhei por ele e pensei, ‘se continuar assim vai cair tudo’. Alertei o dono da casa. ‘Ô, Seu menino, se não cuidar, essa frente vai cair. Pode cair a casa toda, viu?’. Nesse tempo o silêncio me fala sobre inexatidões. Dos dias chuvosos saíram estopins de bombas e notícias, a maioria tão tristes. Cheiro de pólvora, não. Nem senti. Senti alguns medos, coração disparado, uma dorzinha aqui de um lado. Depois saudades, depois lágrimas, depois, amanheci com alegrias.
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