1. Tinha vindo de um lugar qualquer, como quando em sonho, se aparece no cenário sem preâmbulo algum. Inaugurava-se, pois, não obstante ter-se pensado neutra, vazia de palavras, estando com os pensamentos desarrumados e turvos. Ali estava e haveria de dar sinal de presença. Bocejou, voltou-se calmamente para o lado esquerdo da sala, viu as fotos antigas na parede, cuja tinta pedia pintura nova. Duas ou três demãos. Fora disto havia a amostra do sol escaldante e o seu recorte feito pelo enquadramento da janela, a sombra da copa da árvore no chão de terra dura, o calor abafado e a sisudez de um campo exausto e sem flores. Seu olhar luziu, reluziu e estrelou-se pitagórico sobre às três da tarde. Àquela hora Mariana deveria estar na cozinha brincando com meia dúzia de bonecas. Kátia Lilian retornou inteirinha, com o seu cheiro à lembrança do vestido de cassa cor-de-rosa, sapatinhos brancos de plástico e o camiseiro com cortina nas portas. E ela ali, tão ricamente vestida e tão pobre das mãos infantis sobre ela, estática por trás da vitrine, esperando as praças da avenida principal. Figurante domingueira. Um acessório para a sua dona. Era boneca para passeio. Uma tristeza, uma boneca passar a vida inteirinha sem brincar.
  2. É por falar em presença, que as várias ausências precipitam-se. Tão verdadeiras que têm peso e formato. E cheiram, talvez a alfazema daquele frasco, em cuja embalagem uma camponesa apresenta-se colhendo-as, distante e, sob um tempo indeterminado. Esses campos por aqui são outros. São também extensos, mas, empoeirados. São de um amarelo-ocre permanente. Têm chãos dourados, árvores com galhos desfolhados, hirsutos e prateados. É como em um sonho, onde está-se sem saber como se chegou. Que fim levou a boneca que nunca brinquei?


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rabeando

Com quase sessenta

Sem Assunto