Fora do contexto
Menina, então você soube? Seu Cristóvão veio da rua com o cão no corpo e saiu quebrando tudo. Quando dona Dida foi chegando viu que a porta já estava cheia de gente. Fiquei sabendo que o seu Chico, amigo da casa, foi atrás dela, avisar. Tinha ido fazer uma visita na rua de cima e levado os netos. A primeira coisa que avistou, foi a cristaleira que estava no chão, vidro quebrado por todo lado. Uma bagaceira só. Logo ela que tem tanto cuidado em proteger as crianças do que machuca o coração. Irene, você precisava ter visto. Eu não, que não gosto de ver coisa assim violenta que me encho de tristeza. Perco o dia. Tanto que nem quis falar pra Toinho. Você conhece a natureza dele. De pouca fala, ainda balança a cabeça como lagartixa, quando quer fazer favor. Parece não estar nem aí para o sofrimento alheio e disposição - que é bom -, pra dizer qualquer coisa, não tem. Não se comove e nem consola ninguém. Se vou contar qualquer coisa minha e que me entristece, uma raiva, decepção, ele diz com ironia, ‘Caiu nessa? Ô, você não é tão inteligente?’ Oxente, assim, fora de contexto, Irene? Assim. Fora de contexto. Mas vindo dele, eu entendo a coisa, como despeito e elogio pelo avesso. Repara. Eu nunca disse a ele que era coisa nenhuma. Estou lá ligando pra inteligência.
De que me serve? Não vê seu fulano de tal, ali. Quem? Aquele sujeito que a gente falou outro dia. Todo metido a arroz com casca. Aquele? Aponte pra lá não, mulher. Misericórdia! Ele mesmo. Um vocabulário tão complicado que chega a dar nó, título que não acaba mais, um punhado de livros escritos – é verdade, e muita empáfia. Inteligência com petulância tem serventia? A coisa que eu peço a Deus é que pelo menos diminua a vaidade desse povo convencido. Outro dia encontrei com ele no meio da rua. Encheu de soberba umas tantas frases, nomeou-se, adjetivou-se disso e daquilo. E a senhora o que tem feito? Eu? Nada. Quem me dera tanto prestígio. Não chego aos pés do senhor. Disse só pra ver o ego dele inflar ainda mais. Fui cruel, eu sei. Ele, com aquele olhão nas mocinhas que passavam e quando se despediu, eu disse a mim mesma: É demais, ter perdido o meu tempo ouvindo tanta besteira. Conversa inútil, essa.
Assim que cheguei em casa, falei, sabe Toinho, encontrei com o vizinho, que veio como sempre, me contar grandeza. Ele, no jardim, com a ferramenta de poda na mão, desanimado de enfrentar o serviço, respondeu sem olhar pra mim, ‘seu mal é que você julga muito os outros, Irene’. Colocou uma mão na cintura e fez de conta que estava analisando por onde havia de começar a roçar o mato. Que nada, vai-se o dia e ele ali. Então eu dei o troco, alfinetei; ‘Toninho, eu já falei que entendo mais ou menos de linguagem corporal, né? Fiz minhas leituras, conheço um tiquinho. Esse jeito seu não rende trabalho’. E ele, ‘Ah, sei, dessa vez você errou feio. Era de se esperar, seus julgamentos são todos errados’. Certo, desculpe aí qualquer coisa. Vale discutir com quem, beirando os cinquenta anos, ainda não se conhece? É pra isto que preciso de dom maior que a inteligência. Senão me desgasto e arruíno meus nervos. Que Nosso Senhor me perdoe a pretensão se for muita. Preciso de sabedoria, aquela que se escreve com a letra maiúscula. Coisa divina.
_Quantos anos mesmo, Irene?
_De que, minha filha?
_De casamento, criatura.
_Um bocado.
Pois, como eu ia dizendo, gente tão boa, dona Dida, não merecia passar vexame. O povo sem nenhuma compaixão. Não ver que aquilo envergonhava a mulher tão digna? Tudinho amontoado, olhando, só por curiosidade mesmo. Se fosse comigo, eu tinha botado seu Cristóvão na rua na mesma hora. Aquela casa é dela. Disse que, Maria Emília ficou fazendo cena de vítima. ‘Meu Deus, escolha uma boa hora e me leve’. Isso é modo de enfrentar marido ruim? Deu ainda mais motivação à plateia. Se era pra fazer cena, eu tinha ido em cima dele. O sujeito quebrou as louças da mãe dela, Irene. Uma tristeza, ouvir dona Dida me dizer, que tinha nada de chique não, mas era coisa de sentimento mesmo, que ela guardava pra lembrar da mãe. E a queixa dela era só uma; 'Cristóvão é gentinha. Gentinha de ponta de rua' Nem me fale. Dou por vista a cena e a tristeza dela. Não está vendo que não sei lidar com isto. Era da vez de minha mãe, se estivesse aqui, me passar um carão. Me perguntar enfezada quando vou encarar as desgraças da vida com firmeza. Disto eu não sei. Só sei é que Toinho deu pra lá e pra cá, abandonou o serviço antes de começar, e achou mais negócio lavar o carro dele. Agora me diga se tem jeito. Você disse alguma coisa? Eu, mesma, disse nada não. Se falasse, o homem azedava. Mas fiquei com aquela coisinha engasgada na garganta doida pra dizer: eu bem que disse, Toinho...
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ResponderExcluirMuito bom, Goretti, como sempre! Suas palavras fluem de um jeito...!
ResponderExcluirObrigada, viu Clarinha! Um beijo com todo amor pra vc!
ExcluirSó Goretti Brandão para poetizar a realidade de convívios reais ou não!
ResponderExcluirMuito obrigada! A poesia está em tudo, né?
ExcluirGoretti, parabéns! Só você para transformar recortes existenciais em arte.
ResponderExcluirValeu, meu amigo, João! Obrigada!
ResponderExcluirAmei, Goretti! Delícia de prosa!
ResponderExcluirUm beijo, Marina querida!
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