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Amanhecer

Para ontem um hoje que madruga. Meu gato é medroso,  conheço pelo olho arregalado, as costas curvadas, o pelo arrepiado. Como conheço a madrugada ainda escura. essa coisa da noite não querer partir, e a mulher que partiria ao amanhecer estar ansiosa pela última das vezes, perguntando: Que horas? Que horas são? Sabia que iria embora assim que a primeiríssima luz viesse? Teria medo? Estaria ansiosa? Meu gato é tão desconfiado, mia e mia, mesmo tendo comida, tendo meu olhar e minha voz. Mesmo sendo aceito. E eu,   essa mulher que às cinco da madrugada, entre miados e sustos, acordo aos pulos, o coração aflito, sei que o sol é para mais um dia, Portal para o que tem que ser, Então... que o dia amanheça.

Todos os barcos

Quando Violeta abriu os olhos naquela manhã - que nem sabe precisar quando -, viu que era a última de tantas outras dormidas e sonhadas - de sonhos perdidos. Perguntou-se se aquilo tinha que ter sido daquele jeito e, sem outra resposta que não fosse aquela, correu a modificar todas as lembranças. Eram todas inexatas, algumas falsas, algumas meticulosamente dispostas como se fossem verdadeiras. Serviram ainda as fotografias? Quem sabe. Veria depois, sem vexame. Havia sobrevivido a uma dor renitente que há anos doía. E como doía. Mas, com insistência cobriu-se e a seus olhos, e aos seus sentimentos, com uma desonestidade de fazer ainda mais dó. Ridículo aquilo. Seria para salvar-se a si mesma do insucesso no amor? Sei lá... Para que julgar-se? Mas, admitia ter se servido sim, de subterfúgios, para atravessar um sentimento nunca correspondido. Era só a vontade dela, O que em vez de ser uma pena, para a sua surpresa, foi um sucesso às avessas.  Violeta ponderou que todas as suas lágrimas p

Acordada

Meus livros dormitaram na biblioteca sob grossa camada de poeira. São tantos os anos deste descaso. Meu dedo sujo experimenta o pó acumulado, O silêncio das coisas esquecidas por anos. Uma possível história de amor,  um conto de fadas, O gatinho magro que foi ficando e ficou, enquanto esperei sem saber o que esperava. Por isso é que chegaram amanheceres desconexos, aqui e depois de agora (ontem e ontens) Este plural inexistente para hoje e para o que dormiu e fingiu passar. Talvez a vontade louca de que tudo fosse o que não fosse. Talvez a denúncia tardia, o olho aceso propositadamente encoberto, e eu, dizendo a mim mesma, que nada podia ter sido como foi. Acordo, enfim... E encontro as roseiras cheias de botões, um beija-flor, um bem-te-vi cantando alegre. o meu sonho de flores parindo outras. Espano a poeira, abro os livros e vejo. que felicidade!.  Tem tanta coisa que não tinha lido ainda...

Sem Assunto

  Deitada no sofá da sala, uma perna erguida sobre o encosto, Celeste vasculhava distraída o pedaço de céu recortado, bem acima da jardineira do muro. Quanto mais nuvem melhor, pensava. Brincava de ver anjos e bichos que desmanchando-se diante dos seus olhos, evaporavam manchando aquele azulzão celestial. Nela, um desejo ardente de ver coisas sobrenaturais e que de repente, pudesse ser aberto um portal para o Mistério. Mistério, com letra maiúscula mesmo. Algo inacreditável, impressionante. Só de pensar sentia um medo enorme de não aguentar ver o que, segundo a sua própria imaginação ousava pensar, pouquíssimos olhos humanos ou nenhum, talvez, tivessem visto, e morrer de repente. Pensamentos malucos que iam e vinham. A tarde seguiu vagarosa, mastigando os segundos, os minutos e as horas que declinaram na dormência do sol. Celeste seguiu pensando fragmentos. Do que havia feito pela manhã, do cochilo que acertou em cheio a sua distração e arrebatou-a para o esquecimento de si. Despoj

Rabeando

 Atravessando essa chuva todinha e nem deixei palavra dentro do inverno. Pior para mim, que por desleixo, comprometo uma estação, sem dizer minhas coisas. Mas elas estão aqui, sentindo. E quando eu digo; coisa, eu quero dizer muita coisa. Nesta casa que goteja palavras soltas, sonhei outras. Por esses dias sonhei duas casas. Eu, numa sala imensa sem reboco, um canto desejoso de sofá e dois abajures. Sim, logo dois. A outra casa nem entrei. Na fachada, salitre, uma bagaceira. Esmurrei a parede, uma força... e abriu-se um buraco. Olhei por ele e pensei, ‘se continuar assim vai cair tudo’. Alertei o dono da casa. ‘Ô, Seu menino, se não cuidar, essa frente vai cair. Pode cair a casa toda, viu?’.  Nesse tempo o silêncio me fala sobre inexatidões. Dos dias chuvosos saíram estopins de bombas e notícias, a maioria tão tristes. Cheiro de pólvora, não. Nem senti. Senti alguns medos, coração disparado, uma dorzinha aqui de um lado. Depois saudades, depois lágrimas, depois, amanheci com alegrias.

Com quase sessenta

Soledade tinha ido fazer uma faxina no quarto de dona Aurora e vexou-se em pouco tempo de serviço. Encontrou uma caixa de papelão com muito cacareco dentro. Frascos de loção secos, de Leite de Colônia, embalagens de plástico de Leite de Rosa, Charisma, carretéis de linha, mochilas de papel. Oh, mamãe, venha aqui, por favor. Dona Aurora que mexia um doce de leite na cozinha, deu descanso à colher de pau sobre um pires, e sem tirar o avental, caminhou com passos ligeirinhos e sem arrastar os pés até o quarto. A filha, impaciente, quis tirar satisfação sobre aquele troço todo, que à primeira vista, desnecessários, só servia para atrair baratas. Para que tanto lixo guardado, mamãe? Vamos jogar isto tudo fora. Dona Aurora, do alto de seus mais de setenta anos, encheu as ventas de fogo e correu os olhos dentro das órbitas. Mas... encheu-se de calma e sem alterar a voz, explicou coisa por coisa que ali havia juntado. Percebeu com a mesma calma, prêmio daquela paciência aprendida com os anos,

Um sentido novinho

Os gatos eram muitos e passaram correndo pela cozinha fazendo um escarcéu, igual àquele dia quando Dionê, quase sem fôlego, veio até nossa casa contar que Belmiro anoiteceu e não amanheceu. Tinha ido embora. Naquele mesmo dia, Nena havia comprado uma nova máquina de costura, e escreveu no fundo de uma daquelas gavetas estreitas, com caneta esferográfica, ‘hoje, 7 de julho de 1966, Belmiro de seu Afonso, foi tentar a sorte em Santos. Não tinha necessidade daquele alvoroço todo, mas Dionê achou que era novidade.   Saber, Nena já sabia. No dia anterior, Ofélia, mulher de seu Expedito, chamou-a pelo muro, e disse entre dentes, a notícia que nem merecia aquele tom de fofoca, ‘diz que o rapaz vai embora pra São Paulo’. Já vai tarde. Quem falou isso, menina? Não sei, mas que tinha ouvido, tinha sim. Minha mãe benzeu-se, e quando ergueu o olhar e eu vi neles aquela expressão dos santos nos altares da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, não sei porque, lembrei, comparando mal, Nossa Senhora d