Ficando doida


Ilustração: Goretti Brandão
Quando Aprígio me disse sem meias palavras que não sabia pra que serviam os filhos, evitei olhar pra ele bem nos olhos e desconversei. Mudei o assunto e fiz que nem tinha ouvido aquele disparate. Ora pra que servem os filhos?! Escolhi que ia era ter pena dele. Saí da sala e caminhei pra cozinha atrás do quê fazer, só pra não dizer tudo o que eu tinha vontade. Pensei que a hora era aquela de colocar em prática aquele negócio de aceitar cada um, como cada um é. Eu tenho resolvido que aceito. Que hei de aceitar, que é para me sentir capaz de ultrapassar limites pessoais. Essa coisa de me espiritualizar.
Não encontrei o que me agradasse na cozinha e lembrei das minhas begônias. Fui vê-las. As mudas que eu fiz parece que não vingam.

Aprígio sai com cada uma! Às vezes eu acho que é só pra puxar briga, discussão besta. Sabe como é homem insatisfeito, né? Tem que descarregar aquele desconforto em algum cristão. De preferência na mulher dele. Comigo, ele choca, mas não tira os pintos. Fica que nem galo de briga na rinha, doido pra pular no pescoço do rival. Se eu der um espaçozinho de nada, ele avança. Coisa mais sem precisão essa. Não é mais fácil sentar e dizer o que está sentindo? O que é que você tem, homem?.

Hoje acordei indisposta. Meio do mes de agosto. Tem muito vento e faz frio em todo canto. Eu me deixei ficar na cama, como se não tivesse nada pra fazer, até que Josa chegou pela esquina e gritou bem na janela do meu quarto: ‘Violeta, ô Violeta, você taí?’ Levantei com preguiça, abri o vidro da janela, olhei pra fora. Saí da cama me arrastando. ‘Estou doente,  Josa’. Quer dizer: me sinto doente por dentro. Cansada, talvez. Ela também. Estava ali pra me pedir socorro. Queria que eu intercedesse por ela. Tem medo que os irmãos a mandem pra um daqueles lugares onde tratam malucos. 'Tem até graça, Josa: Mandam não. Se aquiete, mulher’. Sem nada melhor no momento, pra distrair a coitada e a mim mesma, fui buscar a minha câmera e fotografei a pobre com os olhos cheios d’água. ‘Venha cá, veja se você tem cara de doida’. Tinha não. ‘Lá em casa doença tem que aparecer no corpo senão não é doença. Até o nome da minha é difícil, nome de doença de gente rica, Violeta’. Como é que gente, pobre e ignorante como o povo lá de casa, pode entender isso?

Tenho vontade mas não choro que assim fragilizo. Perco o controle das coisas que me incomodam e afundo na dor dela. Pensar que não, entro na minha. Hoje tudo me dói. Dói, igual uma palavra bonita, que a gente deixa passar, porque não lembra como se escreve e não tem dicionário pra conferir a grafia.

Outro dia, uma terça-feira, quem apareceu aqui em casa, foi Aurora. Chegou murcha, com cara de enterro, querendo vinte reais emprestados para pagar uma conta de luz atrasada. Contou uma estória cheia de lacunas sobre a doença de Chico, um traste alheio que ela alimentava a pão-de-ló, e de como ele tinha morrido. Sobre a mulher dele, debulhou tanto drama que me abusei. Queria era parecer que nem uma santa, e de santidade eu ando cheia. Ela pensa que me engana aquela astuciosa. Ainda bem não pede uma coisa e já vem outra: ‘Ô Dona Violeta, a senhora não tem não, umas roupinhas aí que não queira, pra me dar? Uma sandalinha?’ Com aquela voz tão macia, tem quem diga do que Aurora é capaz? Não. Não tem. Olho pra ela, eu, serena por fora, e por dentro me acabando de raiva. Fia-duma-mãe, um prato sujo na pia, ela não me pede pra lavar. Não me dá nada de graça. Pensa que sou rica e vive de me dar botadas.

À conversa mole dela, que passou o tempo todo inventando um jeito de levar meu dinheiro, que eu não dei, eu disse a Aprígio: ‘ Acho é pouco’. Ele me olhou surpreso, por cima dos óculos. Tem vezes que destilo fel. Coisa minha, ruindade, guardada aqui dentro. Sou capaz de fazer conjeturas terríveis e dizer coisas abomináveis. ‘É que a gente vive num ninho de cobras’. Tentei justificar. Lembrei de Irene, que veio ontem lavar e passar a roupa, ficou desconsolada debulhando assunto e até me aconselhou que eu não quisesse nenhuma amiga em minha casa: ‘Hoje não se pode confiar mais em ninguém não, dona Violeta. A gente tem que abrir é o ‘ôio’. Que aflição essa minha, a de sentir que, os temores da maioria das mulheres é o de serem trocadas por outras.

Aprígio veio se queixar de um mau jeito que deu nas costas e me encontrou com a cara feia, meio querendo briga. Sem perder tempo se armou de suposições e quis ganhar a peleja antes que ela começasse, dizendo que meus repentes são neuroses graves. Neurose pra mim é dor que não encontrou resposta, rebati. Ai, ai. Irene é quem sabe: ‘Mulher tem que ser boazinha o tempo todo, né?. Não pode nem se enfezar, que tá ficando doida, é dona Violeta?’

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