A noite que mora na gente
Meio
atordoada Emília acordou e viu que a tarde estava indo embora. Esfreguei os
olhos, saltei da cama, a casa escuuura. Saí do quarto e fui acendendo as luzes.
Primeiro a do corredor, depois a da sala, a da cozinha e a do lado de fora.
Olhei as buganvílias que Adilson cortou na semana passada. Precisava fazer um
estrago desses? Aquilo não foi o que se possa chamar de poda, foi destruição
mesmo. O chão do jardim cheio de galhos, as flores pendidas e eu com pena das plantas.
Pensei: Isso é natureza morta pra valer, e Adilson me perguntando sem nenhum
dó, se juntava tudo e colocava na calçada, 'assim dona Emília, sem ‘impatar’ a
entrada da garagem'. E aí eu disse que ele calçasse as luvas de jardinagem, primeiro, que buganvília tem
um espinho medonho e ele respondeu que é uma dor danada quando a gente se fura, e foi juntar os galhos. Pois bom. No outro dia, de manhã cedo,
fomos eu e Olavo pra capital
Hoje, assim que foram chegando de volta, Emília foi logo percebendo que do lado de fora do muro de Antônia, sua vizinha, a hera havia murchado. Coisa de um dia apenas. Mostrou a Olavo: olhe pra aquilo! Ele teimou comigo que não era o que eu e ele estávamos vendo, com aquela mania de me contrariar que ele tem. Desceu do carro e foi olhar de perto. Pegou nas folhinhas retorcidas, que nem São Tomé fez, incrédulo, enfiando os dedos nas chagas de Jesus. Adilson havia cortado os veios da planta. Emília deu de ombros: Por mim... O que se pode fazer Olavo? A hera saiu do meu jardim, foi pro dela, o que é que há? Enfeitou de graça o seu muro esses anos todos. Depois rebrota. Rebrotar como mulher, se Adilson cortou a conexão? Ela olhou pro marido e achou que conexão era uma palavra pra lá de descabida para usar como definição do acontecido. Teve vontade de rir, mas se conteve. Deu demonstração não, riu foi por dentro.
Hoje, assim que foram chegando de volta, Emília foi logo percebendo que do lado de fora do muro de Antônia, sua vizinha, a hera havia murchado. Coisa de um dia apenas. Mostrou a Olavo: olhe pra aquilo! Ele teimou comigo que não era o que eu e ele estávamos vendo, com aquela mania de me contrariar que ele tem. Desceu do carro e foi olhar de perto. Pegou nas folhinhas retorcidas, que nem São Tomé fez, incrédulo, enfiando os dedos nas chagas de Jesus. Adilson havia cortado os veios da planta. Emília deu de ombros: Por mim... O que se pode fazer Olavo? A hera saiu do meu jardim, foi pro dela, o que é que há? Enfeitou de graça o seu muro esses anos todos. Depois rebrota. Rebrotar como mulher, se Adilson cortou a conexão? Ela olhou pro marido e achou que conexão era uma palavra pra lá de descabida para usar como definição do acontecido. Teve vontade de rir, mas se conteve. Deu demonstração não, riu foi por dentro.
Entrei
em casa cansada, carregando a tiracolo, meu notebook e a câmera
fotográfica. Mais nada, e ponto final. Isso faz Olavo sempre reclamar,
que eu penso que ele é carregador. Né não. Mas é homem. Então eu me
faço de rogada e remedio
o descontentamento dele com o adágio: “Carregar peso é coisa pra homem,
que é
quem tem força” Sei usar de racionalizações quando me convém. Mas, ô que
viagenzinha
estressante. Pior do que aquela, só quando Olavo resolve ir bebendo
cerveja. 'Um
dia a polícia rodoviária lhe pega, Olavo, e aí você vai ver o que é
bom'. Falo
quase desejando que isso aconteça mesmo. Ele correndo feito um doido e eu me fazendo de besta pra melhor passar, dando alertas disfarçados:
você está correndo mais do que o devido, ou sou eu que ando nervosa,
hein Olavo? O ponteiro do velocímetro ia a mais de
cem
quilômetros, e eu usando de eufemismos para não acusá-lo de estar
correndo
demais. Não quero briga. Mesmo assim ele me olhou de través, com aquela cara de
irritado
por natureza, mas aliviou o pé um pouquinho, felizmente. Homem difícil
esse
meu. Muito difícil.
Na terça-feira passada liguei pra ele: Está se
sentindo bem,
Olavo? Eu me referia ao seu humor me utilizando de subterfúgios. Uma
evasivazinha proposital. Ele havia se esquecido de tomar o Olcadil antes
de ir
pro trabalho. Fui limpar a mesa, e lá estava o danado do comprimido que o
deixa
feliz, ali, miudinho, camuflado na toalha branca. Estou bem sim, por
quê? Nada
não, Olavo, eu só queria saber.
Primeiro
vamos
arrancar esses matinhos da calçada, depois vamos tirar as hexórias do
canteiro e mudá-las pr’aquela jardineira, viu Adilson? É Emília lançando mão de
seus
eufemismos, agora, com o artifício de conjugar o verbo ir no
plural, dizendo, vamos, para fazer de conta que o
trabalho será compartilhado pelos dois. Um jeito dissimulado de mandar e desmandar. Você tem mão boa pras plantas, Adilson.
Não vê que é só pegar
nelas e elas ficam logo bonitas? Derrama elogio por cima de elogio a
ele, que mexe na terra, vaidoso, como quem pega em ouro em pó. 'Dona
Emília, agora nós vai
aguar, né? Dá pra senhora ir pegar o regador lá em baixo pra mim?'
Adilson é uma
pureza só, não entende de eufemismos nem de palavras arrumadas com
segundas
intenções. O ‘vamos’ para ele é vamos mesmo. Sinto-me envergonhada de saber que sou
capaz
de artimanhas para esconder pequenas falsidades, abusos de poder ainda
que domésticos,
exercidos sobre servidores que nem Adilson. Tenha dó de mim, meu Deus,
que sou
miúda demais. Olavo não. Tem vez que até o admiro. É direto, e
de uma
sinceridade que dá medo. Fica desconcertado quando me revelo olhando só pro meu umbigo, dizendo impropérios, usando
de insensatez, sendo avessada, irracional, maldosa demais, assim, e
chamando a isso de sinceridade. 'Cansei de usar máscara, Olavo'. Depois, longe do olhar dele, eu tenho é medo de esvaziar meu coração. 'Olhe pra mim desse jeito não, Olavo, que eu sinto que preciso experimentar esse lado escondido, essa vontade de dizer que acho
é
pouco, pras coisas que sinto desse modo, e que vivo abafando'. Mas quando
lido
com esse aspecto de mim, parece que não vou saber dosar meus sentimentos. Estou como
se fora duas versões de mim mesma.
No fundo, sou uma criaturinha querendo juntar peças de um quebra-cabeça
para
saber quem preciso ser. Quero aprender a mediar razão e coração.
Emília
chegou à janela, olhou pra fora. Sentiu o cheiro de vida acontecendo. Suspirou
profundamente. Que grandeza a de Deus! Tão perfeito... Às vezes aceitar
sentimentos nossos, desconhecidos, dói. É como descobrir a escuridão, que
estava ali e tinha-se espalhado sobre tudo. Grande demais. Misteriosa demais
pro entendimento da gente. Dá medo. Melhor mesmo é conhecer e lidar com
a noite que mora na gente.
Uns meninos passaram fazendo barulho pela esquina.
Emília se lembrou de Lelo, que criança pequena, olhou pra vastidão do universo
lá fora, fitando a abóboda celeste como se fosse pela primeira vez e gritou feliz: ‘A lua ta rasgando o
céu!’ Deslumbrada, a criança havia descoberto os astros luminosos saídos do
escuro e diante da outra versão do dia, começara a entender o anoitecer “que coisa linda!” dizia, e sem tirar os olhos
daquilo tudo, me perguntou: “Já é de noite, né, mãe?”
belo o seu texto... ontem, boca da noite, eu estava com marina esperando a mãe voltar do trabalho. a lua crescente estava lá entre nuvens ralas, finas, sedosas que passavam por ela. marina olhou e disse: papai, a lua ta se balançando! fiquei a imaginar um grande balanço no céu... as noites que nos habitam tem muitos elementos que muitas vezes nem vemos.
ResponderExcluirum abraço, goretti!
Obrigada, meu querido... Outro pra você!!! Volte sempre!!!
ResponderExcluirBelo, sutil, imaginal, sorrateiro... Você vai contando a história e aos poucos introduzindo o que quer apresentar. Bela maneira de se expressar! Muito bom! Gostei!
ResponderExcluirObrigada, Charles!!!! Abração
ResponderExcluirGoreth,
ResponderExcluirQue texto perfeito!
Em alguns trechos lembra o jeito de Clarice
escrever, noutros, lembra o estilo de Guimarães
mas acho que é sua sensibilidade que permite essa escrita tão íntegra. Amei a alusão à linguagem usada para a dissimulação e o escuros da noite da gente.
Beijo e obrigada por proporicionar texto de tão deleitosa leitura.
Liduína Benigno
Obrigada, Liduína!!!! Também adoro os seus textos!!! Beijão
ResponderExcluirQuerida Goretti! É sempre muito gostoso ler seus textos, já lhe falei há tempos e é aquele gostinho de cotidiano que amo. E eu vou lendo, ao mesmo tempo que visualizando tudo que diz e sempre fui assim...Tudo que li ou leio, vai passando em minha mente como um filme. Mas...São poucas leituras que fazem esse momento mágico acontecer. Uma delas, são seus contos. Passou um filme e quando o texto finda, parece que emiti aquele: - Ahhh...!!! Agora estou lhe seguindo oficialmente. [risos]. Me cadastrei e tudo. Bravo, Bravíssimo, Gó! Que forma deliciosa de falar da Vida. Grande beijo! Sua Fã Vitalícia Ceci Rêgo
ResponderExcluirEste comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluirCecizita querida, obrigada pelas palavras. Fico extremamente feliz em poder proporcionar tais momentos a você e àqueles que me lêem e que gostam, retornam e se tornam meus seguidores... Seja bem vinda ao meu espaço!!!! Um beijão! Obrigada, mais uma vez
ResponderExcluirBelo o seu texto!!! Sempre proporcionando uma boa, agradável, sutil, leitura!!!!Esqueço o tempo passar!!!! Cila Tavares
ResponderExcluirGoretti! Só pra dizer que gostei muito do novo texto
ResponderExcluirli hoje, no final da tarde. Ana Clara Martins