Sertão dourado no jardim das craibeiras
Novembro chegou. As estradas de barro que nos guiam em direção ao
sertão das Alagoas levantam nuvens de poeira que nos perseguem até o
nosso destino. A vegetação muda de roupa com rapidez: do verde
esperançoso à secura cor de siena queimada. Carcarás desenham traços
imaginários no ar em vôos rasantes. Começam os tempos difíceis,
reproduzidos anos após anos, por essas paragens.
Pelos caminhos ensolarados a natureza nos surpreende. Verdadeiros jardins de craibeiras, douradas, quebram a rigidez das imagens pontiagudas dos galhos secos, inaugurando uma beleza de deixar perplexo qualquer vivente. Ver sobre o chão que se vai esturricando, árvores cheias de viço, faz com que nos perguntemos como podem fazer parte da mesma realidade, e em um mesmo cenário, tanta secura e tamanha exuberância. Ao paradoxo exibido, só nos cabe a tentativa de dimensionar a experiência e aprofundá-la às memórias da nossa alma.
Um mundo amarelo despeja flores pelos caminhos e ipês liláses aparecem,
aqui e acolá, estabelecendo o equilíbrio das cores. A natureza é
astutamente dialética e habilidosa na escolha de sua palheta de artista.
Mas, adentrando ainda mais o sertão, novas floradas se anunciam. São
canafístulas e mulungus, inaugurando presença. Do alpendre, em uma
cadeira de balanço, o homem do campo olha o tempo, olha o animal comendo
o resto do verde e pensa na barragem que começou a secar.
Longe, o canto de um pássaro ecoa pela vastidão da paisagem até onde
houver gente para escutar. Entrincheirado por mandacarus e xique-xiques,
catingueiras e velames, um grupo de matutos tirou o dia para fazer um
mutirão. Trocar o chão de cimento da casa de um deles. No copiar,
veem-se os móveis entulhados do lado de fora, além de potes, santos,
televisão. As vozes se misturam aos sons que preenchem o tempo. O calor
aumenta. A mulher da casa matou duas galinhas da sua criação, para
alimentar os homens.
No terreiro, quatro motos, todas com coxim, anunciam que tempos
modernos chegaram ou que está chegando de uma forma muito estranha.
Porque José, homem estudado, morador da cidade, contou que foi comprar
cerveja no bar de Rosa, numa curva de estrada, e a encontrou assistindo
pela televisão, uma animação digitalizada. A confusão foi grande quando
ele quis explicar pra ela que aquilo era que nem desenho. Que aquelas
pessoas não eram reais. Que nada ali era real. Saiu sem conseguir
convencê-la.
A mediação tecnológica, para a singeleza de quem ainda vive a realidade
de mundo através das lentes da ingenuidade, e sequer sabe distinguir o
imagético do real, é algo surpreendente, e quem sabe, denuncie os
enormes vazios da modernidade à diversidade de vivências e experiências
humanas que se fragmentam ou que se apresentam para certos ‘mundos’ como
incompreensíveis.
Mundos esses, sertanejos: de caatinga, de boi mugindo, de garças carrapateiras voando em bandos. Onde não há nada melhor do que encher a vista com tapetes de flores caídas sobre o chão pedregoso, sentir o calor da terra bafejando o vento quente no rosto e festejar o viver, como ele deveria ser: modesto e cheio de simplicidade.
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