Para cicatrizar lembranças
Sol
se pondo atrás da serra e Amélia pensando na vida. Procura ajustar vantagens,
definir conceitos, se imaginar uma vencedora de todas as batalhas. Todas não,
que assim também é demais. De algumas. Mas, de preferência, daquelas bem
vultosas. Aquele tipo de batalha conquistada que perdura pra vida toda como
exemplo à gente mesmo, de que se é forte o bastante. No mínimo, a autoestima
alcança níveis tão altos, que todo o resto passa batido. Às vezes lembrar que
foi possível saltar enormes fogueiras, convém à pessoa. Para Amélia, há anos na
estrada, convém tudo. Cada pequena lembrança de haver sacudido a poeira das
tristezas e desilusões, de haver cicatrizado tombos, passou a ser um entretenimento
destinado aos finais da tarde para o início da noite. Aqui está, pois, bem
sentada no sofá da sala de estar, apreciando as horas escurecendo o dia e assim
ficará até ver as sombras descerem sobre os móveis. Não acende nenhuma luz da
casa. É um propósito, como parte de um ritual, esperar que tudo escureça. Daí
ela vai sair tateando até chegar aos interruptores.
Amélia
é pontual, metódica e cuidadosa em retornar àquelas dores passadas, às que mais
lhe doeram. Flagelação? Nem pensar! É aquilo mesmo de confrontar-se com
memórias para ver se pode se comportar como se não tivessem acontecido com ela
ou como se não tivesse sido ela a protagonista de ingratidões e desonestidades.
Talvez porque comprove que está livre do peso das mágoas, talvez porque queira
medir-se a si mesma: a antiga Amélia chorosa, a esta nova Amélia que aprendeu a
se conhecer e a interpretar sutilezas embutidas nas passagens dolorosas de sua
vida. Tem coisa melhor do que remexer pra lá e pra cá em emoções e descobri-las
inertes?
Vez
por outra, no entanto, quando pensa que não, é sacudida por reações inesperadas.
O coração palpita, umedece os olhos e as lágrimas aparecem abundantes. Coisas
que ainda não se podem abrir nem confrontar, de sorte que ela se julga no
controle e que vaticina de si pra si: “O que não se é capaz de enfrentar, não se
enfrenta!” Guarda as lembranças de volta, rapidamente, para que elas não
evoquem outras e lhes invadam, puxem-na, e que puxem mais outras, e que ao
final, ela sabe, volvam em sentido contrário e a traguem para um lugar sombrio
e difícil de retornar.
Mas
por que diabos isso acontece sempre que a tarde declina? Demora nada e tudo passa
do dia pra noite. “Isso é tão sugestivo à reflexão”, Amélia comentou com a
vizinha, numa conversinha de pé de muro. Pois é... É como fechar para balanço,
remendar, remediar, consertar as fissuras do coração. Ir arrumando direitinho, as
camadas de vida no fundo das gavetas de dentro da gente. Quem pode se livrar de
lembranças? Mas com o tempo a gente sente alívio de ver que muitas desbotaram.
Aquelas, bem pontiagudas, estão como agulhas rombudas, que a gente usa pra
fazer peças de artesanato em estopa. É que nem coisa de alquimista procurando
fórmulas para transformar lixo em ouro. É bem isso que Amélia é: alquimista. Segue
aos pouquinhos penetrando velhas dores. Caprichosa no método, medindo limite,
medindo a própria dor quase atemporal, se põe a arrancar as cascas de suas
antigas feridas, usando como bálsamo, doses homeopáticas de dores menores sobre
dores maiores, para cauterizar sofrimentos.
Retorna-se
levantando para tatear interruptores, acender luzes, retirar-se com vida dos
escombros evocados e remover-se da penumbra que escurece a sua presença sobre o
sofá da sala. Sacode-se, patenteia-se, implode catástrofes e respira devagar, o
odor das sombras que evaporaram. As lembranças de Amélia são que nem tensão de linha
entre os dedos, mediando pontos na agulha, que ela cose, vitoriosa, bordando
nelas extensas cicatrizes. São lembranças vantajosamente ajustadas em sua
memória, que não se esquece de lembrá-la de velhas dores, ainda que elas,
vencidas, já não saibam doer.
"São lembranças vantajosamente ajustadas em sua memória, que não se esquece de lembrá-la de velhas dores, mesmo que elas, vencidas, já não saibam doer." Goretti Brandão. Majestoso texto, Cara Goretti. A cada texto, podemos encontrar Traçoes em comum com os personagens que voce cria dentro de um universo muito conhecido e situações afins. Delícia! Muito grata, Goretti, por "Viagens" tão emocionantes que conduz meu pensar! Bravo! Bravíssimo! Ceci Rêgo
ResponderExcluir