O que não se pode pesar
Não gosto de contar minhas
coisas a gente que dá opinião. Gosto de contar coisa a quem me escuta sereno.
Se olhar com cara de pena pra mim, pior ainda. Quando a coisa é besta, pode
opinar que eu nem ligo. Vendo assim, estou percebendo que conto coisa pesada a
pouquíssimas pessoas. E conto somente pra me ouvir falando. Eu conto as coisas
é a mim mesma. Vou falando e me escutando ao mesmo tempo, e aí já vou
encontrando a resposta, me acalmando, encontrando um jeito com aquele problema.
Levei Zanza até a porta de
casa e voltei para onde estava Aprígio. Olhei pra ele, ali, na sala de estar,
distraído, com uma revista na mão. Não sei se lendo, não sei se fingindo que
lia. Quis ter raiva, mas resolvi que não saio do sério. Não há pra quê. Nesses
vai-e-vens de uma vida toda, sei quando o silêncio é resposta, sei quando calar
é alívio. Ando dispensando ruminações. Não me levam a nada e Aprígio é mestre
em cortar assuntos pela metade, impondo o seu método de evitação. Diz duas ou
três palavras, com aquela voz impostada, só pra mostrar poder e me deixa
falando sozinha.
Antes eu achava aquilo um
baita jogo sujo. Engolia a seco e depois explodia em tanta lágrima que eu nem
sabia de onde vinha tanta. ‘Eu quero ser feliz, eu quero ser feliz’ repetia pra
mim mesma, como quem pronuncia uma sentença que tem porque tem de ser cumprida
à risca. Foi quando dei pra sonhar encontrando tesouros em lugares pedregosos,
que comecei a perguntar a mim mesma o que a minha alma queria dizer. Tantos
anos chorando, tanta lágrima pelos mesmos entreveros! Um sofrimento estagnado,
repetitivo, sem nascer nada de novo dele. Sofrimento tem que gerar alguma
coisa, tem que servir, senão é infrutífero. É dor inútil. Não vale. Lembrei de
Zanza, que veio aqui em casa querendo que eu a ajudasse a encontrar resposta a
uma dúvida sua ‘Ô Violeta, se Antônio fosse vivo, comigo agora doente, será que
ele estava me fazendo companhia?’ Essa resposta eu não tenho, Zanza. É difícil
prever qualquer coisa, quanto mais, quando a previsão é para um alcoólatra. Que
acha? Concorda comigo? Ela riu. ‘Quem sabe, né? Zanza encheu os olhos de
lágrimas para aliviar a própria solidão tão cheia de vazios e ausências. Mora
num mundão de casa. Sozinha.
Mudei de assunto e contei
sobre a teimosia de Aprígio, que se acha o sabichão, mas que às vezes me
aparece no meio do nosso quarto, desolado, com cara de quem se enganou em casar
comigo. Casou com uma mulher que não faz dele um homem feliz. Hilário tinha me
dito, ‘Violeta, como mulher casada, você fez tudo certinho, mas o imponderável
nos escapa’. São as tais das circunstâncias indefiníveis que exercem influência
sobre a vida da gente. Meus silêncios, antes intuitivos - descobri na conversa
com ele -, são o meu respeito àquilo que não é possível ponderar. Tem quem
queira ter resposta para tudo. Ainda há pouco tempo atrás eu também queria.
Encho os pulmões de ar e falo alto: imponderável, imponderável, uma dúzia de
vezes. A palavra é cheia de sonoridade. É eloqüente. Faz-me rir! Esbarro nela,
que veio e se fixou em minha memória, já tem quatro dias. Devo fazer com ela
alquimia, até efetuar da lingüística à evolução da palavra, todo o peso e
significância. Devo com isso dar sentido a sofrimentos estéreis e modificá-los.
Vou da alma da palavra à ventura do meu coração, abrindo um caminho sem fazer
desvios. Isso mesmo. Olho pra Aprígio, distraído de novo, fumando o seu cigarro
de depois do almoço. Sobre que coisas esse homem pensa?
Tem dias que cavo abismos e
atiro palavras em todas as direções, só para atingi-lo, como uma doida atirando
pedras a esmo. Há sempre misteriosos lugares dentro da gente, onde não cabe
mais ninguém. Disso eu sei. Não há como andar toda a extensão e profundidade de
uma pessoa. Nem mesmo da gente. Às vezes a noção de felicidade de Aprígio
combina com a minha. Outras vezes, não. Mas isso não me assusta mais. Meu
sentimento por ele tem que ser descompromissado, senão vou ficar a vida inteira
na cantilena desastrada de “eu quero ser feliz” É muito peso pra ele carregar
por mim, eu querer que o coitado promova o meu retorno ao paraíso, coisa impossível.
Devo a experiência da vida e da alegria, a mim mesma.
Domingo passado, às sete da
noite, àquela minha conversa baixinha, em tom de quem revela segredos, Hilário
escutou com paciência. E foi quando me apresentou a frase onde o imponderável
apareceu, para preencher os meus lugares sem respostas. Diante disso me achei
mais confortável. Avultei-me. Cresceu um sentimento bom dentro de mim. O que
chamei de iluminação antes, encontrara solidez. Revelou-se como um presságio.
Depois ele me explicou sobre como enterrou quatro ovos de cágados e esperou
pelas trovoadas para que os animaizinhos viessem à superfície. Adiante, a torta
holandesa, ‘que você tem que me dar a receita, Hilário’. Tem creme de leite,
chocolate meio-amargo, biscoitos, recheio aerado. Adentramos à madrugada,
inaugurada às duas da manhã, quando olhei o relógio. Esses pequenos detalhes me
dão a noção de que tenho a posse de mim e do que sou.
Quarta-feira. Apaguei a luz
do quarto, Zanza deve estar sozinha no dela, contando as telhas, acordada, desejando
que Antônio tão trabalhoso que foi, estivesse com ela. Aqui em casa, Aprígio se
ajeita pra lá e pra cá na cama com o nariz obstruído e uma insônia daquelas.
Tenta dormir. Estou em silêncio, quieta, ponderando o que é possível ponderar.
Após os conflitos e a perda do que eu era antes, descubro-me mergulhada em
tesouros. Sou rica. Liberto Aprígio do peso das
minhas projeções. Agora sim é que vou começar a amá-lo.
Santana do Ipanema,
17/12/2009
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