Amanhã já é ontem
Foi não foi, e a gente volta a lembrar de umas pessoas. Agorinha mesmo lembrei de Tonho. Cabra baixinho, cabelo sempre pedindo tesoura, bigode invocado, boné e um andar ligeiro, ora puxando, ora empurrando o carrinho do pão. Chegava aqui na porta de casa e buzinava, esperando Josa vir abrir o portão. Ruim de conta, a gente tinha que fazer todos os cálculos. Contar os pães, fazer a soma, pagar, e dizer a ele quanto era o troco. Mas, era um exímio farejador de chuva. Anunciava até as trovoadas. A gente pedia e ele investigava o tempo com calma, rodando os olhos como telescópio, céu acima e abaixo. Batia as pestanas bem devagar afinando-se com a sabedoria, ‘hoje não. Mas, amanhã, se prepare a senhora que vai chover’ . E chovia mesmo.
Maria é outra lembrança. Mulher de meia-idade, branca, forte, voz gutural. Vinha ter comigo, quase diariamente, lá pelas quatro da tarde - o sol ainda quente - vermelha como um camarão. Pedia uma coisa, eu dava e de imediato, já pedia outra. Aquilo ia-se arrastando até que eu perdesse a paciência. ‘ Tenho nada mais não, Maria. O que eu tinha pra lhe dar hoje, eu já dei, mulher!’. Aí vinha a queixa: ‘Violeta é ruim. Violeta é ruim’. “Rū-im”, ela pronunciava assim. E ia-se embora resmungando, levanto nos pés o peso do corpo, até sumir-se ladeira abaixo.
Tonho e Maria entraram-me sentido adentro, de uma forma, que como se diz, eu nem dei fé. Nem se anunciaram. Do mesmo jeito e de supetão, comparando mal, como tia Prazerinha, que meteu a mão pela vidraça da porta da amiga dela, e foi surpreendida pelo cachorro da mulher, que deu-lhe uma mordida de graça. Rendeu-lhe um passeio de toda tarde, de ida e vinda ao hospital pra tomar vacina. O danado nem vacinado era. Aquele episódio, reclamava ela, tinha-se tornado um viva-rosário, que diga-se de passagem, soube tirar bom proveito. Toda arrumadinha, passava na volta lá na casa da gente que era caminho, aconchegava-se, sentando à mesa da cozinha, fazia vários lanchinhos. Era um cafezinho com biscoitos aqui, um suco com bolo, um doce de leite mais tarde, e ainda tinha prosa boa com quem chegava.
O cheiro desses dias prenderam-se ao meu olfato. A gaze envolvendo o braço da minha tia, também prendeu-se a mim. Ela desfazendo o curativo, mostrando com ar de vítima a mordida, descrevendo o cachorro e o susto que tomou. ' Doeu muito, tia?' Parece que tudo é hoje.
E hoje, a menininha que mora na esquina do outro lado da rua, disse qualquer coisa que o vento levou, antes que eu pudesse entender. Era como se as palavras fossem sendo desfeitas jogando letras vento afora. E ainda agora há pouco, a moça da Biblioteca Pública Breno Accioly, chamou-me pelo messenger. Tão afetuosa - ‘Violetinha!’-, e dispôs-se solícita, a me manter informada sobre a programação da Festa de Senhora Santana e de um evento literário. A mim a vida é uma mistura de imagens e sons univérsicos gigantescos. Às vezes confundo-me às jornadas de um nunca terminarem. O ontem e o agora. O que já foi, fica sendo de novo. O que é, já tem um depois. Amanhã já é ontem. Tem um quê de eu não saber como Tonho, passar troco à memória, agendar passado, separar o tempo e conjugá-lo no pretérito imperfeito como um verbo, etiquetá-lo, guardar no esquecimento.
O que é bom viver de novo, sempre me pede mais lembrança.
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