Arte Primitiva Moderna em Santana do Ipanema
Um ensaio crítico sobre o trabalho de dois artistas sertanejos
Sobre outras coisas que vi na feirinha da Economia Solidária é uma pena que eu não esteja conseguindo ilustrar o Ensaio Geral com fotografias, desde muito tempo. (Sempre que tento colocar alguma, acontece um problema).
- Hoje, gostaria de mostrar pelo menos dois dos quadros que vi expostos. São trabalhos de dois artistas: ambos sertanejos, com estilos e olhares bem distintos, sobre a realidade. Um dos artistas revela sua constante apreensão do cotidiano, em cenas que acontecem sobre cenários que estão sempre situados nas periferias, coisa bem típica das nossas cidades do interior. Suas cores são fortes, às vezes borradas, chapadas, são pintadas em telas, sobre desenhos livres, sem perspectiva aérea ou linear, sinais característicos da arte naif.
- Nelas, o artista apresenta o submundo marginal, denso e muitas vezes triste. Mulheres em prostituição, quase despidas, exibem seios flácidos, pele enrugada e acompanham homens não menos sofridos, que assumem corpos que denunciam a embriaguez constante, o ócio. O bar que os contém a todos, é lugar de refúgio às dores de uma realidade massacrante.
Outros trabalhos do mesmo artista santanense trazem cenários religiosos. São procissões, onde a mesma gente marginalizada, suja, descalça, surge descendo ladeiras. Um bêbado caminha ao lado, com sua garrafa de pinga na mão. Figuras que se misturam. Crianças, mulheres grávidas, homens barbados, expressam suas desolações, contrições e, não raro, uma delas se sobressai pelo jeito hilário com que aparece na cena. Realmente” a arte imita a vida”.
É comum que cachorros magros apareçam nas telas em constante vigilância, deitados perto dos seus donos embriagados. Certas personagens são ainda mais esquisitas, desdentadas, despenteadas, barrigudas, em completa desordem e decrepitude física. Ao trazer à praça a realidade de um cotidiano que sobrevive escondido das nossas vistas, mas que está tão próximo da gente, o artista consegue chocar a maioria das pessoas, que criticam a sua arte.
O segundo artista retrata cenas do cotidiano que marcam o simbolismo da imagem que se tem do semi-árido. Cavaleiros em cenas de vaquejadas, terreiro sob a luz do ocaso, jumentos carregando água. Seu traço é limpo, sua pintura é fluida e revela também traços característicos da arte primitiva moderna. Cada artista é único em sua maneira de expressão artística. Mas ao ver o trabalho desse segundo artista, sempre me pergunto sobre aquilo que chamo de repetição de certo modo de ver a realidade, quando ela é transposta para as telas.
A meu ver alguns artistas se subordinam e encurralam a própria criatividade, a essas imagens que reproduzem um “modo de ser sertanejo”. Imagens que estão destinadas a perpetuar no imaginário de quem olha esses trabalhos, uma idéia já gasta – por não corresponder à realidade atual -, de um sertão que parece ter parado no tempo. Um sertão de imagens que sofreram um congelamento no tempo e no espaço.
Há muito que a motocicleta tem tomado o lugar do cavalo, embora o sertanejo tenha transferido o selim* do cavalo para o assento da moto. A antena parabólica ocupa os céus, muda a paisagem, embora o verão seja árido, poeirento. Os artistas precisam atualizar os signos do nordeste. Apontar para as transformações que vêm ocorrendo. Pintar parabólicas entre mandacarus, motocicletas no curral... Ver o mundo que está acontecendo dentro do seu próprio universo. Criar novas imagens que falem, denunciem, ou que simplesmente levem o fruidor a conceber e conhecer novas versões sobre essa realidade, em beleza, em tristeza, em pormenores.
Ainda na feirinha, tive o enorme prazer de saborear o trabalho do artista santanense. Belo trabalho, ainda que o seu valor estético, seu poder denunciador, não seja entendido pela maioria. Trabalhos que possuem um alto grau de sensibilidade, sobretudo, na questão social. Forte, genuíno e até assustador. Mas que ultrapassa a repetição, os signos viciados e se projeta, grande, em dimensão e criatividade.
Selim: Pequena sela rasa
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