Sentir para mim é encantamento

Sexta-feira ensolarada. É bem provável que o dia avance dessa forma. Manhãzinha, chuva desproposital e de pouca molha, levantou um cheirinho de terra aguada. Acordo. Estou viva. Quero escrever, mas as palavras fugiram de mim, como fazem de vez em quando. Tudo que vejo é simplesmente tudo o que vejo e apenas o que vejo. A alma das coisas se esconde e meus olhos apenas refletem a vida sem mergulhar nela. 

Preciso da permissão do que existe por dentro do que se vê, para entrar naquilo que não se vê. Pensar sobre árvores, sobre a chuva, sobre a mulher que passa na rua catando lixo, me obriga a senti-los. Sentir é encantamento, talvez delírio, porque não me basta pensar sobre o que está claro: a árvore, suas folhas, sua raiz. A chuva que molha, a mulher que necessitada, cata restos nas lixeiras. 

Quero sentir a partir das imagens. Por isso é que me arrisco a sair do lugar de dentro de mim onde sou confirmada, para emprestar valor àquilo que, disposto, é quase sempre lido pelo pensamento, racional e tão exato que bloqueia outras versões da minha consciência. 

Persigo como um cão furioso a busca de significados, porque assim, vendo sem poder ultrapassar o que vejo, percebo-me como uma câmera fotográfica nas mãos de quem faz fotografias sem saber enxergar o sentido das coisas. Busco completude e respostas que acalmem a minha ânsia e a minha necessidade de exigir de mim mesma a resposta da resposta para aquilo que sinto que as coisas representam e o que posso vir a ser por causa delas. 

Tenho sede de significantes e neles, nos que estão diante de mim, quero infiltrar perguntas, como faço à interpretação dos meus próprios sonhos, para revirar pelo avesso cada símbolo que me invade, até esgotá-lo. As minhas melhores perguntas sempre são as que fazem o meu coração. Se por algum motivo perco com ele a intimidade, sufoco a alma e não consigo enxergar para além do que vejo. 

Não é de registros imagéticos que preciso povoar minha vida, mas dos significados que esses registros trazem. E extrair significados, valorá-los, conceituar relevâncias é a minha maneira de acrescentar profundidade à experiência de viver. Estou nublada. Acordei estéril. Funciono racionalmente em relação às minhas vivências no mundo, mas não me conforta definir as coisas pelo sim ou pelo não, apenas. 

Os critérios do pensamento me ocupam um território, eu confesso, pouco conhecido, atrofiado até, e que me sufoca por isso. É o sentimento quem respira em mim.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Com quase sessenta

Rabeando

Sem Assunto